Por motivos profissionais voltei a Lisboa, e fiquei num apartamento mesmo em frente ao IPO (Instituto Português de Oncologia). Apenas a rua nos separa, mas às vezes quando me sinto irritado ou angustiado esqueço-me quem sofre do lado de lá. Neste domingo, ao fim do dia, comecei a olhar atentamente para o edifício, as luzes e veio-me logo ao pensamento pessoas amigas que andam a sofrer este flagelo. É uma luta em que tudo deixa de fazer sentido, até aqueles, grandes e pequenos, que tanto mal na vida nos fizeram, e que num quadro de sobrevivência até lhes perdoamos venha a saúde que tanto queremos.

Quanta gente sofre naquele edifício neste momento. Quantas caras de alegria ou tristeza, correm por aqueles corredores. Neste edifício não há meio termo: ou se vence ou se perde, a vida.
O drama não arrasta apenas o doente. Família, amigos e às vezes até inimigos que mostram carácter e honra e sabem separar as «águas».
Durante os meus estudos de Bioquímica aprendi um pouquito sobre o cancro. A complexidade, a incerteza, ainda persiste, peses embora as Ciências Biomédicas têm feito um trabalho notável de investigação e vão conseguindo, a pouco e pouco, ir entendendo, ir desenvolvendo formas de minimizar como estes mecanismos vivos conseguem destruírem-nos.
É estranho como uma simples rua separa a vida quotidiana que temos da irracionalidade do conceito de querer viver. E tanta gente que por aqui passa, nem se apercebe o que vai para lá destes muros, como uma cidade dividida, só que não há hipóteses de fugir. Curioso que o muro de Berlim caiu e trouxe a liberdade ao mundo. Este, por enquanto, não! É apenas mais um muro de Lisboa, que delimita o conceito de propriedade, mas divide algo tão importante que raramente nos lembramos.
Em garoto ouvia falar num médico Gentil, complementado com o nome de Martins. Uma das minhas tias foi sua doente, e as consultas eram pagas pela consciência da pessoa. Não havia tabela, nem honorários, nem IVA ou o que fosse. Também por ironia do destino este Gentil, acabou por falecer de cancro. E por isso o Edifício tem o seu nome, fazendo-se justiça à injustiça da doença.
Tento imaginar o que vai dentro daquelas luzes, agora que a noite caiu. E talvez, por sorte, por mão divina, por Fé, por superstição, talvez, talvez, hoje haja mais sorrisos, haja mais esperança, porque a vida é algo tão frágil, mas valioso, que a vingança, a perseguição, a impunidade, ali não fazem sentido.
Agora que em breve iremos entrar em campanha para as autárquicas além se lembre de uma placa, um monumento, aos mortos, aos que perderam a vida numa luta tão desigual. Não defenderam a sua terra, ou o seu país, mas viveram os dias finais numa esperança que nem sempre aparece.
Ninguém sabe quem amanhã lhe bate à porta. Hoje apenas vi pela janela. Mas para lá daquelas paredes, senti que deveria perdoar as magoas que sentia, deveria perdoar, os enganos que me fizeram, e deveria também pedir perdão pelas imperfeições de coisas que talvez não devesse ter feito.
Pelo menos hoje, nesta noite, no IPO de Lisboa, se possa sentir um pouco menos de sofrimento. Talvez como a ironia do destino!
Lisboa, 11 de Agosto de 2019
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«No trilho das minhas memórias», ficção por António José Alçada
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Junho de 2017)
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