Em garoto tinha de assistir às touradas portugueses, não sendo o que mais apreciava, fascinando-me, no entanto, as cerimónias de abertura das «corridas à antiga portuguesa». Passados tantos anos reconheço, mesmo não sendo um aficionado, que a tourada portuguesa é um marco da cultura de alguns locais, devendo por isso, na minha opinião, ser respeitado. Tive a felicidade de no ano de 2014 ir assistir a uma Capeia Arraiana, numa das aldeias da Raia, onde fiquei agradavelmente surpreendido como mais uma região de Portugal, apreciava e vive a festa popular com estes animais, não tendo notado o entanto a lide com as bandarilhas e parecendo-me que a bravura se traduz num jogo entre a força de um touro e os jovens casamenteiros que empurram o forcão. A razão desta minha crónica é mais uma vez que esta festa popular e ancestral, não seja «enrolada» nas políticas de Lisboa, e de outras grandes cidades europeias, que infelizmente, julgam que a festa popular são as sardinhas do Santo António e os manjericos.
Sendo familiar de grandes aficionados, em garoto, tinha de assistir às corridas na minha terra natal, Setúbal. O meu avô materno, médico de serviço à Praça de Touros Carlos Relvas, praguejava por vezes a tanta estupidez, nomeadamente dos forcados, que voluntariamente se entregavam ao risco e, por vezes, com consequências fatais. O uso da palavra «voluntário» não foi casual. Com o tempo entendi que os aficionados vibram com os touros como os adeptos com os seus clubes de futebol. E também os pilotos de automóvel se entregam ao risco com prazer ficando muitas vezes pelo caminho.
A tourada portuguesa, bem diferente da castelhana, por muitos defeitos que tenha, dá espaço ao povo e à nobreza de partilhar no mesmo espaço a lide tauromáquica. E desde que nasci os animais não eram mortos em publico, pelo menos em Setúbal.
Para além da Moita, onde para além da corrida toda a vila vibrava com os touros que deambulavam pelo cercado que percorria as principais artérias, a Raia Sabugalense tem «afición» muito própria onde a população vibra desde a chegada dos touros até à praça onde se realiza o «debate» entre a bravura taurina e os casadoiros da localidade, tornando-se num espetáculo ímpar da nossa riqueza cultural. Talvez por isso, pela mística e pelo fascínio de um grupo de jovens usando uma estrutura de madeira, de nome forcão, procurando encostar o touro à barreira, acontecendo também o contrario com os jovens a «voar» porque o animal com os chifres levanta o dito forcão, proporciona uma tarde diferente, agradável e onde o touro é indiscutivelmente a figura central.
E se calhar noutros locais de Portugal também existem espetáculos taurinos com a chancela cultural do povo dessas terras, com mais ou menos bravura.
Aparentemente sem nada ter que ver com este assunto, há cerca de 20 anos tive uma contenda profissional com um criador de suínos, porque, segundo este empresário o ruído rodoviário provocava stress nos animais que faleciam prematuramente. E neste contexto exigia a instalação de painéis de proteção acústica. Obviamente que o caso durou uma dúzia de anos nos tribunais, até que um dia fui chamado, pelo Meritíssimo, para dar a minha opinião. Tendo tido uma fase da minha vida profissional que me dediquei ao estudo do ruído sonoro, expliquei que a legislação em vigor se aplicava ao comportamento do ouvido humano, que seria diferente de outros animais que tivessem audição. O nosso ouvido está bem estudado e sabe-se os valores dos níveis de ruído que podem afetar o nosso corpo humano. Mesmo tendo pesquisado nada encontrei estudos de ruído para o ouvido de suínos ou de outros animais. O Meritíssimo, nessa altura, entendeu não existir matéria de facto que comprovasse a relação ruído rodoviário com o comportamento auditivo do suíno.
Com este exemplo procuro transmitir que o facto de espetarmos uma farpa num touro, num javali, num cão ou num humano o comportamento sensorial de cada espécie é distinto e pôr-se em causa uma tradição secular, parece-me precoce e inclusivamente de falta de respeito para com essas gentes, normalmente de zonas bem longe dos grandes centros onde a sua voz não se faz ouvir.
Voltando à sardinha, símbolo mítico da minha terra, começo a ficar preocupado com a forma abrupta como morrem por asfixia. E assim tem sido no perder dos tempos onde acredito que não deva ser agradável, mas não vejo outra forma de saborear esta iguaria.
É melhor ficar mesmo por aqui, porque os nossos parceiros europeus preocupam-se muito com preservação dos designados animais vertebrados, onde curiosamente estão os touros e as sardinhas, e qualquer dia sinceramente não sei o que comer ou mesmo divertir-me.
Por isso este ano não vou falhar uma das inúmeras Capeias Arraianas, símbolo único deste Interior.
Baleizão, 1 de junho de 2019
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«No trilho das minhas memórias», por António José Alçada
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Junho de 2017)
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Obrigado pela nota. Afinal como pensava temos muito que aprender sobre a Capeia
Caro aficionado.
Referiu que” procurando encostar o touro à barreira”. Esse não é o objetivo. Seria demasiado perigoso…!
Pelo contrário, o forcão não pode estar perto da “barreira”… para se poder rodar.
Saudação arraiana
Obrigado meu irmão escuteiro
Quem tem sangue arraiano deve gostar da capeia, única no mundo.
Parabéns Alçada por mais este contributo para a cultura tauromáquica portuguesa, lenbando um evento de uma Região a que pertenço e muito esquecida.