A crónica de hoje passa-se em pleno século XVII ainda antes da assinatura do tratado de Lisboa, em 13 de fevereiro de 1668, onde finalmente Portugal formalmente almeja a sua plena independência. Em semana de óscares, e ainda em recuperação de uma maleita, achei que este meu argumento merecia, no mínimo, a estatueta de melhor argumento original. Pelo menos os meus amigos leitores poderão livremente opinar, e quem sabe, dar-me força para enviar esta estória para Hollywood.

A nau conseguiu entrar no estuário da Figueira, vencendo a corrente do Rio Mondego que nasce na Serra da Estrela, atracando horas depois no cais da Portagem, em plena cidade Coimbra. Avistei a torre da Universidade que como um farol para a navegação enobrece a paisagem desta cidade. Ainda consegui ouvir os carrilhões a bater a retirada para os estudantes irem para as aulas.
No cais da Portagem estão imensos navios e barcaças atracadas. Muitas vêm das Beiras carregadas de madeira, vinho e azeite, através da navegabilidade do Mondego. Sem dúvida que para mim foi uma surpresa. Nunca imaginei tanta embarcação atracada.
A Praça da Portagem era um corrupio de gente de todas as profissões, arcas, baús, mulheres com cestos na cabeça, mendigos, prostitutas, enfim até os guardas do Santo Ofício não faltavam. Já tinha ouvido falar do movimento desta cidade, mas nunca imaginei esta riqueza de imagem, de som e de vida.
A minha vinda a Coimbra é ao serviço de El Rey. Decorria o ano de 1657, e trago uma carta assinada por Sua Majestade, para entregar ao Alcaide-mor. Aquele selo lacrado escondia uma verdade desconhecida. Pelo que entendi nos corredores do palácio de Vila Viçosa, um perigoso subversivo terá vindo de Espanha e chegado a Coimbra através de uma destas embarcações.
A situação estava tensa com a Holanda, onde os Comissários Holandeses que vieram a Lisboa felicitar o novo Rei de Portugal, D. Afonso VI, apresentam uma declaração formal de guerra ao Secretario de Estado português. Um risco de aliança entre a Espanha e a Holanda era patente, tornando vulnerável novamente a nossa independência. As principais causas prendiam-se com os territórios ultramarinos que na sua maioria foram quase todos ocupados por holandeses.
Ainda antes da subida pela encosta do quebra costas resolvi ir a uma tasca comer qualquer coisa: broa e um copo de vinho, numa confusão nunca vista. As gargalhadas das prostitutas e contendas entre os artesãos eram ensurdecedoras. Quando paguei, e deixei a propina, a moça sorriu-me agradecendo com um «querido». O choque de idades trouxe-me alguma azia do vinho que bebi. Tinha idade para ser minha neta!
Começo então o calvário da subida até ao Palácio do Alcaide-mor. Trepo pela encosta com o peso dos botins e da espada, transpirando como um mouro no deserto. Mesmo a brisa que se faz sentir pouco ou nada me refresca. O suor escorre como lágrimas de uma viúva inconsolável.

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A guarda de honra esbarra-me a entrada no palácio. Mostrei-lhes o envelope selado por El-Rey D. Afonso VI, tendo sido escoltado até ao Escudeiro-mor, chefe da guarda.
O olhar cortante deste oficial não me agradou. Exigiu-me que lhe entregasse o documento que o faria chegar a Sua Exa. o Alcaide-mor.
O instinto levou-me a agarrar o punho da espada firmando-lhe que a entrega teria de ser pessoal. Os guardas desembainham as espadas e encostam-me ao pescoço.
Sozinho sem possibilidade de defesa deixo cair o envelope no chão obrigando a um alívio da «tensão» e desatenção dos guardas, que com um pontapé no documento os fez virar as caras e deixou-me uma escapadela para fugir.
Corri o mais que pude agarrando o chapéu de aba larga, tendo conseguido despistar o perseguidor. O palácio era enorme e consegui esconder-me na capela. Escura como breu, tinha imensos cortinados que abrigavam portas em madeira. Ali fiquei à espera. Espera de nada sem saber o que fazer!
Entretanto entra alguém tendo conseguido espreitar identificando um sacerdote que se ajoelha no altar. O silencio permanecia naquela imensidão o que me obrigava a permanecer estático. Qualquer mexida provocaria um som metálico do cinto, ou da espada, ecoando na nave da capela.
Vou observando o sacerdote até que sinto algo familiar. Parecia muito com um tio, de nome Francisco, que era sacerdote e lente de Teologia na Universidade. Não tinha a certeza, mas as parecenças eram patentes. Já não o via faz seis ou sete anos.
Não havendo outra alternativa resolvo sair do esconderijo muito pausadamente e dirigir-me ao altar. O sacerdote continuava a rezar concentradamente nem se apercebendo da minha chegada. Ajoelho-me ao seu lado fazendo o sinal da cruz e baixando a cabeça.
«Tu aqui? Homem de Deus que vieste cá fazer?»
As palavras mesmo em surdina mantiveram-me cauteloso. Fiz o sinal de silencio e indiquei a direção do confessionário deslocando-me para lá, mostrando a concordância do Tio Francisco.
Em confissão contei-lhe o que se tinha passado. Estava escondido e sentia perigo. A carta estava perdida e a missão fracassada. O sacerdote nada dizia até que se fez o silencio de espectativa se poderia contar com a sua proteção, ou não. O Tio Francisco aconselha-me a esconder no confessionário enquanto se ausenta.
Fiquei alguns instantes em silencio até que ouvi passos na capela. Pelo som e o ecoar parecia de uma mulher. Sinto que ao seu ritmo se vem aproximando de mim. Ajoelha-se e pede a confissão. Era a esposa do Alcaide-mor, e informou-me do perigo que estava a correr. Foi amante deste homem que viria buscar e estaria preso nos calabouços do Tribunal do Santo Ofício. Era um perigoso agente ao serviço de Espanha, que se infiltrou na sociedade Conimbricense como lente de Filosofia, na universidade. Conheceu-o por volta de 1645, logo após o fracassado cerco de Elvas, e com o tempo foi descobrindo que mantinha muitos contactos com mercadores holandeses. Um dia, enquanto dormia, descobriu correspondência com o selo do Rei Filipe IV. Assustada confessa ao marido que a castiga e a manda enclausurar no Convento de Santa Clara, «até que a alma fique purificada».
A perspicácia do espanhol pressentiu que foi descoberto tendo fugido para a Serra da Estrela.
A vergonha da perda da honra do Alcaide-mor, tornou este caso num problema passional, querendo vingar a infâmia com a morte na fogueira deste mensageiro de satanás. A perseguição ao dito espião começa por todo o Mondego até que finalmente o apanham escondido na casa dos Pina Aragão e Costa, em Linhares da Beira. Esta família sempre esteve conotada com os monarcas espanhóis tendo, no entanto, prestado fidelidade a D. João IV.
A determinação do Alcaide-mor em mandá-lo queimar ultrapassou o poder do próprio Arcebispo de Coimbra, tendo a sua guarda o entregue no Tribunal do Santo Ofício com uma carta ao Juiz de Instrução que não hesitou no designado Auto de Fé a pena capital por heresia e estar possuído pelo demónio: queimado na praça pública!
A pobre mulher nada mais diz, contendo um choro de sofrimento e terminando que graças à influência do Arcebispo e do meu Tio, junto do Alcaide-mor, conseguiu ser libertada da clausura. Levanta-se e sai.
Sem dúvida que nada convinha ao Reino este homem ser morto. Era conveniente falar com ele e tentar sacar informações que podem salvaguardar a segurança do Reino e evitar uma nova guerra.
Espero mais um pouco até que chega o Tio Francisco com uns paramentos de frade. «Tens de te encobrir com isto. Esconde a espada, as botas e o chapéu. Este é o meu confessionário e os teus pertences aqui estão seguros.»
Colocando o capuz e acompanho o meu tio até ao coche, este ordena o cocheiro: «Para o Paço Episcopal!» Durante o trajeto o Tio Francisco explica-me que a minha vinda já era do conhecimento do Alcaide-mor. Não estava em segurança porque não havia intenção de me entregar o criminoso. O próprio Alcaide quer a todo o custo que esse homem fosse para a fogueira. Mas era importante salva-lo. Deve ter informações importantes sobre a movimentação da espionagem holandesa e espanhola.
Não demorou muito a chegada até Sua Eminência. Agradeceu muito a minha presença. A missão de o levar para Lisboa era do interesse da Igreja e do Reino. A coroação da Nossa Senhora da Conceição pela Rainha D. Luísa, foi marcante na aproximação da Igreja Portuguesa à dinastia de Bragança.
Fiquei, no entanto, impressionado com o que ouvia. Este espanhol acabou por ser convencido pela família Pina Aragão e Costa a entregar-se e a colaborar com Portugal. Não interessava a Espanha e a Portugal uma nova guerra. E os holandeses apenas pretendiam expandir-se para o oriente beneficiando do Porto de Lisboa, por ser bem mais perto.
O Episcopado não tinha influência no Santo Ofício. E esta instituição tinha fortes laços com Espanha. A solução seria convencer o Juiz a absolver o criminoso. Mas como?
O Arcebispo de Coimbra sempre foi um critico à soberania de Castela e aos abusos da Inquisição Espanhola. Tendo uma guarda, ordenou que durante a noite se ateasse um fogo nas traseiras do tribunal e no meio da confusão se libertassem todos os presos. Eu ficaria com a missão de apanhar o espião e levá-lo para Santa Clara onde um coche do episcopado nos levaria para Lisboa. A nau que me transportou servia para passar o rio para a outra margem e seguiria apenas com a tripulação para Lisboa. Assim, mesmo que a guarda na barra Figueira da Foz intercetasse a embarcação, de nada servia.
Tudo correu como previsto, trazendo o dito para Lisboa por terra e recebendo a bênção do Patriarca.
Soube com revolta da traição do embaixador português em Haia, tendo desertado para Madrid e levado todo o espolio da representação diplomática. Foi então nomeado, pelo Secretário de Estado do Reino, o seu substituto. Apenas pedi que este espião me acompanhasse e lhe fosse atribuída uma credencial diplomática.
E assim graças a este homem, que tinha o propósito de prejudicar Portugal, acabou por me ajudar por conhecer as fragilidades nos Estados Gerais (o poder executivo dos holandeses), e conseguir a paz reavendo Portugal os territórios na América e África, sem se ter disparado um tiro, tendo perdido, no entanto, as do Oriente.

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Este tratado, datado de 6 de agosto de 1661, feito neste contexto histórico, foi uma vitória tendo em conta o momento difícil para tentar conservar no máximo a hegemonia territorial, sem agravar mais ainda a nossa posição de vulnerabilidade na Europa. E nem teria sido possível se após a reconciliação entre a Espanha e a França, dois anos antes, o regresso dos Stuarts em Inglaterra não tivesse aberto perspetivas a uma nova aproximação entre Portugal e a Inglaterra.
Resta só o sal de Setúbal, que naquele tempo valia tanto como o ouro! Neste tratado os holandeses ficaram com a concessão de o explorar!
Não haveremos de ainda ser pobres…
Haia, 6 de Agosto de 1661 (ao serviço do Reino de Portugal)
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«No trilho das minhas memórias», ficção por António José Alçada
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Junho de 2017)
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