Indigitado pelos Corpos Sociais da Confraria do Bucho Raiano para proferir a Oração de Sapiência neste X Capítulo, foi com algum receio que assumi esse encargo, tendo em conta as apresentações de oradores e investigadores qualificados que prestigiaram os Capítulos anteriores. Na qualidade de humilde confrade, peço à digníssima assistência que aceite com benevolência o meu singelo contributo.
Retrocedamos a cerca de 50 milhões de anos para um início histórico e posterior desenvolvimento até aos nossos dias. Registos fósseis revelam-nos essa longa existência dos Entelodontidae, antecedentes remotos do Sus scrofa (nome científico do javali, ou porco do mato). De então para cá, consideremos três espécies de javali consoante as regiões de proveniência:
– O Sus scrofa scrofa, da Europa e Norte de África;
– O Sus scrofa vitatus, da Ásia (designadamente Japão, China e Indonésia);
– O Sus scrofa cristatus, igualmente da Ásia, mas do subcontinente indiano.
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Pelos registos geográficos mais próximos, pinturas rupestres de Altamira, depreende-se que o javali existe na Europa há pelo menos 15 mil anos. Para chegarmos ao que hoje é designado por porco doméstico (Sus scrofa domesticus), teremos de recuar a 9 mil anos a.C. (Grécia e Turquia), a 6 mil anos a.C. (Egipto) e a 4 mil anos a.C. (Europa Central), portanto ao último período do Neolítico – a Idade da Pedra.
Quanto a civilizações primitivas, podemos deduzir que os sumérios já se alimentavam de carne de porco. Do povo celta vêm referências às divindades Moccus (o deus dos porcos) e Freia (deusa que usava o cognome de Syr, a porca). No Antigo Egipto, Nut, a mãe dos deuses e do céu e dos astros, era muitas vezes representada com traços de porca ou de vaca amamentando os filhos. Sabemos também que o porco espezinhava o solo para facultar a sementeira de trigo e puxava o arado. Da civilização grega, Heródoto (séc. V a.C.) diz-nos que os egípcios consideravam o animal impuro porque se alimentava de detritos e excrementos. Os seus tratadores estavam impedidos de frequentar lugares sagrados.
Na Grécia Antiga o porco era sacrificado para a deusa Deméter. São de Aristóteles as primeiras observações científicas sobre estes animais, as suas características, aptidões e hábitos. Na Babilónia os porcos andavam à solta, com a função de limpeza de detritos nas ruas. Foram os fenícios que trouxeram o porco doméstico para a Península Ibérica (1000 anos a.C.). O propósito da sua utilização como recurso económico surgiu com os romanos, que criaram instalações específicas para estes animais.
Esculturas proto-históricas de granito, representando animais que mereciam veneração, encontram-se espalhadas por Trás-os-Montes e Beira Alta, sinalizadas mais de quatro dezenas por Santos Júnior e outras descobertas posteriormente. O Abade de Baçal descreve a Porca da Vila, em Bragança, mas temos aqui na nossa região a possibilidade de observar em Castelo Mendo, concelho de Almeida, a Porta dos Berrões, onde dois exemplares parecem dar as boas-vindas aos visitantes.
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Detém a Bíblia a sua quota-parte de responsabilidade pela divulgação da impureza do porco (Levítico ou Terceiro Livro de Moisés), que considera o animal impuro por ter unhas fendidas. E com este antecedente encaremos de igual modo a parábola das pérolas lançadas a porcos (Mateus). No que diz respeito a religiões em que o porco é referenciado, para que esta comunicação não seja demasiado exaustiva, vamos cingir-nos apenas às três religiões monoteístas da bacia mediterrânea: islamismo, judaísmo e cristianismo.
O muçulmano obedece a tudo o que Allah ordena e abstém-se de tudo o que proíba. Acata tudo o que é lícito (tradições hallal) e rejeita o ilícito (haraam), independentemente das considerações ou objecções que o assunto suscite. O Alcorão ensina: «Os bem-aventurados são os que dizem: ouvimos e obedecemos.»
Posto isto, no que concerne ao porco, os muçulmanos não podem consumir a carne nem o sangue, excepto em casos de necessidade extrema para efeitos de sobrevivência. Razão da proibição: preservar a vida e a saúde, necessidades básicas. As restrições não se limitam à carne e sangue de porco, mas também ao álcool, a animais selvagens, répteis, anfíbios, seres do mar, neste caso com excepção de peixe com escamas e camarões.
No judaísmo, as leis restritivas (kashrut – regras alimentares) determinam quais são os alimentos kosher, aptos para serem ingeridos.
Quanto a mamíferos, apenas os que têm unhas fendidas e ruminam. Dessa ambivalência estão excluídos, por exemplo, o camelo, a lebre e o coelho, que, embora ruminem, não têm as unhas fendidas. E também o porco, que, apesar de ter as unhas fendidas, não é ruminante. Não se pode pois comer a sua carne nem tocar no cadáver.
Trata-se de restrições determinadas pela Lei de Moisés (entre outras, tome-se como curiosidade que é proibido aparar a barba, misturar no vestuário linho e lã e juntar leite e carne numa refeição («Não cozinharás o bezerro no leite de sua mãe», Torah). Note-se porém que a Lei de Moisés permitia apedrejar os adúlteros e condenar à morte os filhos desobedientes.
Das duas religiões mencionadas, vejamos esta correspondência: o que é lícito para o islão é encarado como tradições halaal, com base no Alcorão. O que é lícito para o judaísmo é tomado como tradições kosher, com base nas leis procedentes da Bíblia e do Talmude.
Vejamos agora o cristianismo. Com tradições impostas pelo judaísmo, é Jesus que informa que não mudará uma vírgula na lei vigente, até que passem o céu e a terra (Mateus).
A segunda epístola de Pedro parece vir ao encontro dessa decisão de acatar as leis do judaísmo, classificando o porco como animal imundo, comparado aos que insistem no pecado: «O porco lavado revolveu-se de novo no lamaçal.»
Mateus insiste que não se deitem pérolas aos porcos, «eles as pisarão». Cabe também a referência aos 200 demónios exorcizados por Jesus, transformados em porcos e afogados.
Vem, apesar de tudo, o Novo Testamento atenuar, ou libertar um tanto, a maldição lançada sobre o porco e a sua carne, nestas palavras de Jesus:
«Não é o que entra pela boca que torna o homem impuro, mas o que sai da boca, isso é que o torna impuro» (Mateus). Ou quando o Mestre diz a Pedro: “Não chames impuro ao que Deus purificou” (Actos dos Apóstolos). Em Marcos podemos ler: «Jesus disse: não entendeis que tudo o que vem de fora, entrado no homem não pode torná-lo impuro, porque nada disso entra no coração, mas no ventre, e daí para a fossa?»
Alguma contenção recomenda o cristianismo, atendendo a que na Idade Média se observava um consumo intenso de carne de porco, exagero que foi condenado pela Igreja. «Não se deve comer carne vermelha» – alusão ao sangue de Cristo derramado. Vem assim desse período histórico a intenção de fortalecimento do cristianismo mediante a recomendação de jejum em datas religiosas.
No concílio de Selêucia-Telifonte, nos primeiros tempos do cristianismo, já se considerava a carne um alimento maldito que incitava ao desenfreamento sexual. Daí resulta provavelmente o significado da expressão «pecado da carne».
Abordadas estas religiões monoteístas, encaremos agora observações sobre alguns países quanto ao porco.
Na China e no Vietname, o porco é um animal do Zodíaco. Traz sorte, virilidade, é símbolo de abundância e fortuna (recordemos que decorre actualmente o ano do porco na China).
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Na Nigéria o porco é elemento preponderante da civilização. Em países budistas, a Porca de Diamante é coadjuvada por sete porcos.
Na Alemanha o apreço pelo porco vem dos teutões, que sacrificavam o mais valioso animal para garantia de boa sorte.
A literatura é pródiga em referências ao animal de que nos ocupamos.
É possível ver em Aristófanes alusões a enchidos e presuntos.
Na Odisseia, Circe transforma os companheiros de Ulisses em porcos, escravos dos desejos da feiticeira.
Petrónio, no Satyricon, descreve o prazer do sabor do marroncho.
Plínio, na História Natural, considera que o porco é o animal com a melhor matéria alimentar.
«Exibir um pedaço de presunto ou de toucinho velho no surrão era o melhor salvo-conduto para viajar pelas Espanhas», escreveu Cervantes.
De George Orwell e da sua fábula política O Triunfo dos Porcos, colhemos a expressão: «Todos os animais são iguais mas alguns são mais iguais do que outros.»
Trindade Coelho, escritor que aqui no Sabugal exerceu o cargo de delegado do procurador régio, na sua obra Os Meus Amores, traz-nos o diálogo de António Fagote, exigente nos leitões de 3/4 semanas, aptos para uma boa refeição: «Leitão do mês, cabrito de três», dizia o juiz da Festa da Senhora das Dores, em Mogadouro.
Albino Forjaz de Sampaio, em Volúpia, a Nona Arte, qualifica os enchidos de “maravilhosas criações culinárias, e rojões com batatas novas e salada de alface fresca são um prato digno dos deuses”.
O poeta Alberto Pimenta é autor de uma obra cujo título sugestivo e provocatório é um jogo irónico de palavras: Tomai, isto é o meu porco. E muito mais se poderia citar de obras literárias em que o porco é referido.
Na arte, há que assinalar, por exemplo, abordagens sobre o porco em obras de Hieronymus Bosch, Pieter Brügel, Dalí, Max Ernst, Velázquez, Albrecht Dürer.
Chaim Soutine mostra-nos, por exemplo, a natureza viva e dinâmica das entranhas do animal.
Botero coloca a cabeça de porco junto a outros elementos em natureza-morta.
Patricia Piccinini, nas suas criações escultóricas, apresenta-nos figuras antropomórficas que sugerem a ideia de atracção ou repulsa pelas formas e minudências de revestimento com semelhanças flagrantes com a nossa pele.
Rafael Bordalo Pinheiro, o consagrado caricaturista, denuncia a classe política exaurindo as tetas da grande porca.
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O artista urbano Bordalo II, que tem concitado a atenção pelas suas composições macro recorrendo a lixo e escórias, conta na sua animália com a obra A última ceia, com os porcos a comerem o mundo em pedaços.
Se entre nós, portugueses, as raças de domínio se limitam ao bísaro e ao porco alentejano, haverá por certo mais de uma centena de raças diferentes espalhadas pelo mundo, muitas delas na América Latina, onde o porco foi introduzido na segunda viagem de Colombo. A título de exemplo, no Brasil proliferam, entre muitas outras, as raças autóctones de Canastrão, Zabumba, Caruncho, Mexa Bomba, Pinapetinga. Mas para a célebre feijoada a escolha recai em raças estrangeiras, como a Landrace (dinamarquesa) ou a Large White (inglesa).
Mangalica é uma raça experimentada no Fundão (Quinta das 1001 Patas), por um casal belga, que aposta na excelência da carne, confirmada por notáveis chefes de cozinha quanto à qualidade dos presuntos.
Julgo pertinente referir os defensores dos direitos dos animais, sabendo nós quanto o porco é vilipendiado enquanto vivo. Apontando críticas à forma como o animal é tratado, encurralado e sacrificado, eis particularidades dignas de nota:
– O porco representa fartura e prosperidade, essencialmente a fêmea, devido à sua prolífica produção.
– É dotado de inteligência, considerada em igualdade ou mesmo superior à do cão.
– A sua tendência para se enlamear ou sujar corresponde à necessidade que tem de manter a temperatura corporal, pois tem glândulas sudoríparas atrofiadas.
– Se tiver condições que lhe propiciem escolha, ou em ambiente natural, urina e defeca em locais precisos, contrariando assim a ideia de sujidade que lhe é atribuída.
– É sociável e sensível.
– O mau cheiro que para os humanos é desagradável, constitui uma forma de comunicação com elementos da sua espécie, através de glândulas que geram substâncias odoríferas.
– O porco é útil na procura subterrânea de trufas, pelo seu olfacto apuradíssimo.
– Garante a subsistência do agregado familiar em zonas rurais de escassez económica.
– Por apresentar semelhanças com os humanos, pode representar uma óptima ajuda na detecção precoce de doenças e sua cura e até no transplante de órgãos.
Festividades em que o porco é personagem ocorrem em muitas localidades do nosso país, com particular realce no São João de Braga. A Corrida do Porco acontece na véspera do dia de São João, juntando cavaleiros e duas confrarias locais, com saída em cortejo dos Paços do Concelho para o monte de Santa Margarida para «emprazar o porco». Cercado e aprisionado, o animal é levado para a ponte de acesso a Guimarães. O regresso é festejado com beberete e são oferecidos aos cavaleiros cestinhos de fruta. A festa completa-se a 24 de Junho com nova incursão. Os sapateiros perseguem o animal para que ele atravesse a ponte, mas a isso se opõem os moleiros, que querem que o porco atravesse o rio.
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O Santo dos Chouriços, em Óbidos, com romaria à ermida de Santo Antão para bênção dos animais, apresenta semelhanças com os festejos de Santo Antão em Vila Boa, aqui a dois passos. De 16 para 17 de Janeiro, já com matanças concluídas, os mordomos procedem à arrematação de oferendas – chouriços disponibilizados ao Santo pela população, como promessa de boa sorte.
Permitam-me focar agora algumas extravagâncias e curiosidades que quebrem a melancolia que a minha comunicação possa ter provocado. É costume nas nossas terras darmos nome a alguns animais domésticos, como o cão ou a vaca, mas prescindimos dessa atribuição ao porco, que recebe, isso sim, inúmeras designações, maioritariamente de índole pejorativa: javardo, suíno, marrano, varrão, varrasco, cochino, reco, marroncho, tó, porcino, chico ou simplesmente bicho.
Pois bem. A onomástica conduz-me ao “Frederico”, também conhecido popularmente por “Besta”. Trata-se do porco de maior envergadura existente em Portugal, na localidade de Ordins (Penafiel): 600 quilos de peso distribuídos pelo seu comprimento de 2,12 metros.
Orgulha-se Condeixa-a-Nova de ser a terra natal do padre João Augusto Antunes, que tinha a fama e o proveito de voraz comilão, o que lhe valeu a alcunha de Padre-Boi. Numa recepção dada na localidade ao rei Dom Carlos, também ele um bom garfo, o anfitrião indicou-lhe que estava presente um grande apreciador de comida e de exagero descomunal.
Quis o rei que lhe fosse apresentado esse notável comilão. Foram localizá-lo na cozinha, onde completava o seu almoço com excedentes, à mesa da criadagem. Do mesmo Padre-Boi se conta que na Pampilhosa estava presente numa refeição em que se comia à discrição. Insaciável, após comer desalmadamente carne de porco, solicitava ainda um reforço que completasse o seu apetite voraz, quando lhe anunciaram que se esgotara na cozinha a comida quente. Ao olhar para a vitrine, viu exposto meio presunto e solicitou:
– Tragam-me então aquele. E à boa maneira de Obélix, só sobejou couro e osso.
Como curiosidade, aponto alguns exemplos da nossa toponímia em localidades que merecem uma referência pelo assunto que estamos a tratar: Cama Porca (Abrantes), Chiqueiro (Lousã), Rabo de Porco (Penela) Vale da Porca (Macedo de Cavaleiros), Porca (Ponte de Lima), Mata-Porcas (Monchique), Vale de Porco (Mogadouro). No nosso distrito, Porco era o antigo nome de Aldeia Viçosa e Porcas mudou o seu nome para Vale de Estrela. Culmina nesta lista a cidade de Amadora, que tinha o nome anterior de Porcalhota.
O termo marrano, relacionado com os judeus, sugere-me na mesma acepção a utilização profusa nas nossas terras da palavra “judiaria”, sinónimo de travessura, maldade. Veja-se o desafio de agarrar um porco ensebado, de fazer tatuagens na pele do animal, ou da vanglória de um pretenso artista que divulgou um vídeo em que um porco vivo suspenso era golpeado com luvas de boxe.
O tempo urge e a conversa vai longa. Eis-nos chegados ao porco morto, ao momento de redenção e vingança de todas as ofensas e qualificações desprezíveis a que o porco foi submetido em vida: imundo, imoral, impuro, obsceno, torpe, grosseiro.
As matanças estão sujeitas a condições impostas aos seus produtores:
– Os animais têm de estar identificados de acordo com a legislação.
– Não podem sofrer de perturbações comportamentais ou funcionais nem ter sofrido acidentes.
– O abate tem de ser incluído pelo produtor no RED – Registo de Existências e Deslocações.
– Cada produtor pode abater, para autoconsumo, até três suínos por ano.
– Os produtos que não se destinem a consumo, como vísceras ou carcaças, têm de ser eliminados.
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A matança tradicional, baseada em costumes de longa data, impõem a presença de médico veterinário e inspecção higiénica dos porcos antes e depois da matança.
Como não nos deliciarmos com os primeiros produtos da matança tradicional, seguida do desmanche minucioso, confeccionados no momento? – o soventre, também conhecido por barriga ou panceta, a passarinha, equivalente ao baço, alguma fressura e o sangue da burzigada, que inaugura o convívio à mesa de todos os intervenientes no acto.
Virá o esquartejar cuidadoso, o tratamento dos presuntos e paletas (patas dianteiras), as mantas de toucinho presas ao courato, os nacos de carne para enchidos, as orelhas, os chispes, a focinheira, as febras, as costeletas, as bochechas, as plumas, a cabeça e os ossículos com carne residual.
Digno de reconhecimento é o trabalho extenuante das enchedeiras, atafulhando a tripa. A conclusão dá-se com os produtos alinhados nos varais da cozinha, de onde mais tarde sairão os presuntos para a salgadeira e o bucho terá honras de primazia no Domingo Gordo.
A carne de porco é utilizada das mais variadas formas. O chispe, assado, guisado, frito ou cozido, com a sua carne saborosa e tendões.
A perna, que pode ser confeccionada por inteiro ou em medalhões, bifanas e bifes, podendo ir à panela, à sertã ou à grelha.
O entrecosto extraído da entremeada com separação do courato e excesso de gordura, grelhado por excelência, assado no forno, cozido ou mesmo guisado.
A pá corresponde à pata dianteira sem chispe, assada por inteiro ou cortada em pedaços destinados a rojões ou carne à portuguesa ou à alentejana, adicionada neste caso com as amêijoas do Sudoeste. Providencia igualmente bifes fritos ou grelhados.
A bochecha ou faceira é carne da cabeça, utilizada em culinária diversa. As costeletas, consoante as vértebras, das cervicais às dorsais, são peças de excelente qualidade, assadas, fritas, guisadas, preparadas de múltiplas maneiras, mais secas com febra do cachaço ou do lombo, ou mais macias se forem do fundo ou com pé.
O lombo excelso é a peça sem osso, preparado inteiro ou em bifes, e o lombinho também inteiro, para grelhar ou fritar, é óptimo para espetadas.
A gastronomia portuguesa baseada em carne de porco é de grande versatilidade, com um cardápio que não pode competir com outros produtos culinários, ombreando somente com o bacalhau nas múltiplas apresentações.
Restam ainda produtos fumados, como bacon e orelheira. Para petiscos ocasionais, venham torresmos do redanho, iscas, couratos das feiras, chichorros caseiros.
Chegamos aos enchidos e à multitude de produtos daí resultantes: chouriços e chouriças, linguiças, paios, painhos e paiolas, salpicões, salsichas, mouras, alheiras, farinheiras, morcelas, cacholeiras, bufeiras, salames, butelos, palaios e por fim o bucho, que nos congrega na confraria a que dá o nome, mais especificamente o bucho raiano, apreciado e exaltado e propagado pelos nossos confrades.
A este produto executado com as carnes menos nobres, conferimos-lhe a aura de sagrado em toda a sua nobreza. Insistimos na sua apresentação tradicional e confeccionado do mesmo modo que tem persistido de geração em geração.
Numa ousadia de experimentações, quisemos em determinado momento submetê-lo a um comportamento gourmet. Um chefe de prestígio decidiu-se pela sua cozedura em vácuo para que não se dissipassem os sucos, desidratou as acompanhantes morcela e farinheira, compôs um serviço perfeito de forma fatiada, com os grelos imprescindíveis e batata propícia com enfeites de novelinhos de tiras finíssimas de carne e pétalas comestíveis. Provado e aprovado, foi submetido à apreciação final de um crítico de vinhos e comidas, que revelou e justificou a sua posição favorável e dissertou sobre enchidos da nossa região.
O evento decorreu numa das instituições da Casa Pia de Lisboa, o Colégio Maria Pia, em Xabregas, no seu restaurante gastronómico, onde são ministrados cursos que habilitam alunos que queiram exercer no futuro a sua profissão como chefes de cozinha e como empregados de hotelaria.
O nosso confrade honorário Adérito Tavares fez previamente para os alunos uma preleção sobre a região atravessada pelo rio Coa da nascente à foz com diapositivos que ilustraram adequadamente o objectivo pretendido de divulgação. A presidente da Casa Pia de Lisboa, revelou o seu agrado no discurso final que proferiu. A Direcção da Confraria do Bucho Raiano esteve representada por membros do seu Capítulo, Mesa de Vedores e Chancelaria.
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Conquanto nos orgulhe o agrado geral pela experimentação a que o bucho foi submetido, é nossa intenção prosseguir continuadamente na forma tradicional de confecção. Com esse princípio, aquando do evento referido, ofereci à Confraria um poema com o título de “Bucho raiano”. Com a sua leitura final termino esta comunicação, agradecendo a toda a assistência a atenção demonstrada.
Bucho raiano
Porquito lançado à ceva
Por pechincha mercantil
É comenda de reserva
No lugar do chambaril
Folhado e palha centeia
Esterco abonde garante
Chafurda, foça e volteia
Pede arganel o tratante
Nos masseirões e gamelas
Viandas de farelagem
Terrábia e nabo às rodelas
Na pia da beberagem
Renovo, milho e botelha
Com sobras de refeição
Traz o cochino à cravelha
Roncando pela ração
Toca a gaita ó capador
No teu mester de navalha
Agucina amolador
O facalhão que Deus valha
Homem disposto de borco
Em tabuleiro de entranhas
Seu corpo dentro do porco
Com sangue, fressura e banhas
Das andanças da matança
À lufa-lufa caseira
Da chouriça em pé de dança
À morcela e farinheira
Colorau é ponto de honra
Cautério tradicional
Enchidos à tripa forra
Das terras do Sabugal
Salva o chouriço a pobreza
Partilha a fama do paio
Plebeia a carne é nobreza
No requinte do palaio
Da focinheira o desplante
E do rabinho à orelha
A carniça sobejante
É dos ossinhos parelha
Fumeiros que fumo aquenta
Pelos serões invernais
Na cozinha fumarenta
Pende o bucho dos varais
Pelo Natal quedo e mudo
Tal Ano Novo e dos Reis
Apronta-se pelo Entrudo
No despautério das leis
Já Quaresma é de visita
De jejuns e continência
Domingo Gordo concita
O repasto de excelência
A saquitela singela
Que do bucho faz clausura
Quer panela em sentinela
Por três horas de fervura
Venha a batata cozida
Em guarnição abastada
A nabiça por guarida
Na travessa aprimorada
E que enfeites de vaidade
De Dom Bucho a parentela?
Farinheira que lhe agrade
Com a clássica morcela
De carava e catadura
O desejo não desdenha
É convivência natura
Comer da mesma barrenha
No costume que é mantido
De candeia sempre acesa
Há salgadeira e enchido
Há bucho e grelos à mesa
Quando a fartura incendeia
As libações de euforia
“Dois ponto Cinco” Gouveia
É vinho da Confraria.
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José Leitão Baptista
Infelizmente não me foi possível participar neste Capítulo da Confraria do Bucho Raiano e ouvir esta notável oração de sapiência. Fluente, plena de referências culturais e com uma pitada de bom-humor, nela transparece a personalidade multifacetada de José Leitão Batista. Parabéns!
Adérito Tavares