«A incompreensão do presente nasce fatalmente da ignorância do passado» (Marc Bloch). O recurso à Roda dos Expostos, pelas famílias carenciadas, para obtenção de subsídios para sustento dos filhos, mostra-nos a miséria em que viveram os nossos antepassados. O controlo exercido pela Câmara Municipal de Sortelha sobre o a instituição, o envolvimento das autoridades civis e religiosas revelam a complexidade de interesses, sempre com a preocupação de socorro aos mais necessitados.
De acordo com o Dicionário da Língua Portuguesa, as rodas dos enjeitados eram «cilindros giratórios com uma grande cavidade lateral que se colocavam junto às portarias dos conventos».(1) A primeira Roda dos Expostos surgiu na França no século XII.(2)
O antigo concelho de Sortelha
Pertencia à Comarca de Castelo Branco, era constituído pelas freguesias de Águas Belas, Aldeia de Santo António/Urgueira, Bendada, Casteleiro, Lomba dos Palheiros, Malcata, Moita, Penalobo, Pousafoles do Bispo e Sortelha. A freguesia de Sortelha tinha as anexas seguintes: Azenha, Caldeirinhas, Dirão da Rua, Espinhal, Quarta Feira e Quinta do Clérigo. Com a extinção do Concelho, em 1855, Espinhal e Quinta do Clérigo passaram a pertencer a Águas Belas.
A pobreza e recurso aos benefícios sociais
Neste período foram muitos os exemplos de famílias pobres a recorrer à justiça par poderem sustentar os filhos. Neste processo foi relevante o papel dos párocos que contatavam diariamente com os respetivos paroquianos, conhecendo ao pormenor a realidade social e familiar e realizando as diligências necessárias junto do Juiz de Fora e Câmara Municipal.
Vejamos os exemplos seguintes:
I. «Aos nove dias do mês de Fevereiro de mil oitocentos e vinte e oito anos e nesta villa de Sortelha, no meo escriptório, por António … da Quarta Feira me foi apresentado um requerimento. Despachado pelo actual Juíz de Fora José Maria Pinto de Mendonça Arrais, com a qual vinha huma atestação do Reverendo Vigário desta villa Luís Leitão, requerendo o dito Ministro que elle tinha sete Meninos sem os poder alimentar invocando sua pobreza, e que por isso se lhe mandasse Matricular e pagar pelo rendimento dos expostos a quantia mensal que aos mesmos se pagão; à vista do que o dito Ministro assim o mandou e ficou Matriculada a filha Roza, que a mesma May pela dita quantia Mensal se obrigou a bem trata-la, e de tudo, fiz este termo Eu Joaquim d’Aguillar.»(3)
No final existe uma anotação/informação que refere que ficou provida até ao fim do mês de março.
O pároco passava a certidão de pobreza, o mesmo era deferido pelo Juíz de Fora, depois o pai da criança levava o atestado ao Presidente da Câmara.
II. Em onze de março de 1828, José, filho de Silvestre … por motivo de pobreza, foi Matriculado na Roda dos Expostos «para ser criado pelo Depósito dos Expostos, o tempo de leite.»(4)
Analisar e deferir requerimentos deveria ser uma das principais ocupações do Juiz de Fora.
Parece ser evidente a confusão de competências. A Roda era claramente dependente da Câmara Municipal, e controlada por esta.
A pobreza foi o principal fator que levou as famílias a recorrer à ajuda do Estado, matriculando os filhos na Roda dos Expostos.
Por vezes as crianças abandonadas traziam um bilhete, como o caso seguinte:
III. «Vai este menino baptizado, o seu nome é João e não teve os Santos Óleos, nasceo a 13 de Dezembro de 1831.»(5)
IV. «Em nove de Agosto de mil oitocentos e trinta e oito foi exposto na quinta do Espinhal aporta de Maria do Jerónimo um menino chamado Fortunato e foi entregue com o enxoval que trazia a Ana Marcelina do Espinhal que se obrigou a bem tratalo.»(6)
V. O exemplo seguinte, prova a existência material da instituição Roda:
Máxima – Em dezasseis de Junho de mil oitocentos e trinta e dois foi apresentada pela rodeira Maria Escolástica: “… huma menina que avia sido exposta na Roda a qual trazia: “Quatro envoltas azuis velhas, uma camisa de linho velha com folhas de paninho, três coeiros de estopa velhos … foi baptizada pelo prior Luís Leitão e entregue à Ana Maria Mendes que se obrigou a bem trata-la.”(7)
Faleceo a vinte e três de Julho de 1832.
VI. Sessão de 11 de fevereiro de 1851.
«…foi tomada em consideração hum requerimento de António Nunes Faria do lugar de Lomba dos Palheiros deste Concelho, no qual pedia lhe fosse arbitrado ordenado pelo Cofre do Município a huma filha recennacida Maria de Nazareth por lhe haver morrido sua mulher Maria Leocadia, restando-lhe dois filhos, todos impubres, e como o requerente seja muito pobre, e não tinha meios alguns, alem do seu braço para alimentar, venha a esta Camara implorar o socorro de nove meses de criação para a ditta sua filha mais nova mandando-se-lhe matricular por estes nove mezes no competente livro dos Expostos deste concelho, e com eles receber igual ordenado, o que a Camara tomou em consideração e assim ordenou…»(8)
Manual de instruções para se poder matricular como exposto
Auto da Câmara de Sortelha, de 8/06/1838:
«…ser obrigação natural sustentar cada hum seus filhos e descendentes, devendo em caso de necessidade e muita pobreza e doença recorrer às Casas da Misericórdia e caridade e somente em último devido a extrema necessidade às Justiças para ellas mandarem criar pelo Cofre dos Expostos…»(9)
Auto da Câmara de Sortelha, de 8/07/1838:
“… E por quanto todas as sobreditas crianças não estão nas circunstâncias de serem alimentadas à custa do povo carregando com uma contribuição forçada, nem os mesmos serão mesmos Meninos Enjeitados ou desamparados; mas antes pelo contrário humas filhas de pessoas casadas, e outras até filhas de mulheres erradas que nunca os quiseram por seus filhos os tem e reconhecem.”(10)
Podemos considerar estes documentos como sendo o Manual de Instruções para as autoridades civis e eclesiásticas:
1.º – Dever dos progenitores e ascendentes de sustentar os filhos e descendentes;
2.º- Recurso às Casas da Misericórdia e caridade;
3.º- Recurso à justiça.
O objetivo era clarificar as regras para que uma criança fosse aí matriculada, evitando lançar impostos sobre a população trabalhadora, pois havia necessidade de dinheiro para pagar o vencimento das Amas, realizar as despesas inerentes ao funcionamento da instituição e contribuir para o Cofre dos Expostos. Muitos dos matriculados na Roda dos Expostos não eram de fato enjeitados! As famílias carenciadas matriculavam os filhos para obterem ajuda para o seu sustento. Apesar desta deliberação as crianças oriundas de famílias pobres continuarem a ser matriculadas com a autorização do município, confirmando a situação de extrema pobreza em que viviam muitas famílias.
Estes documentos são esclarecedores quanto à miséria e ignorância em que viviam estes povos.
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1. Dicionário da Língua Portuguesa com Acordo Ortográfico (2016). Roda dos enjeitados. Porto Editora, 2003-2016.
2. INÁCIO, Nuno Campos. «Um Contributo para a História do Direito: Os Expostos», in Jurismat: Revista Jurídica, n.º 5, Portimão: Instituto Superior Manuel Teixeira Gomes, 2014, pp. 348.
3. Arquivo Distrital da Guarda, Caixa N.º 001 – Fundo Câmara Municipal de Sortelha, Livro dos Expostos – 1828-1840, folha 50. Por se tratar de comunidades com um reduzido número de famílias, para evitar interpretações erradas, ou qualquer tipo de suspeição, omito o apelido do pai.
4. Idem, folha 53.
5. Arquivo Distrital da Guarda, Livro dos Expostos 1828-1840, Caixa N.º 001, Fundo Câmara Municipal de Sortelha, folha 93.
6. Idem … (trazia bilhete, apesar de não o ter encontrado).
7. Idem, folha 99.
8. Arquivo Municipal de Sabugal, Livro das Sessões da Câmara de Sortelha – 1850 – 1855” – A expressão “e com eles” está repetida no original.
9. Livro das Atas das «Sessões da Câmara Municipal de Sortelha», Arquivo da Câmara Municipal de Sabugal.
10. Idem
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«Memórias de Sortelha», opinião de António Gonçalves
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Janeiro de 2019)
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