A propósito do oportuno texto de Paulo Leitão Batista «O património culinário raiano», faço minhas as palavras de José Carlos Mendes no seu comentário. A memória da nossa infância beirã guarda todos esses sabores, e também a do caldo escoado, da sopa de baiges e do caldudo; a da chafraina, do coelho bravo com míscaros, das trutas do Côa e da salada de meruge; do arroz doce cremoso, das espumas ou nuvens, das mílharas e do calabaçote; das filhoses, das floretas, das bicas doces e das parronilhas.

Já tive oportunidade de falar sobre a cultura gastronómica ribacudense em agremiações regionalistas e de aqui escrever sobre o mesmo tema. A gastronomia, como qualquer outra área cultural, tem uma história, uma tradição, uma memória. Evolui, tal como a música, a pintura, a filosofia ou a literatura, e hoje existe uma culinária inovadora que, em busca de estrelas Michelin, recorre frequentemente à química e à estética, muitas vezes em desfavor do paladar e da tradição.
A este propósito, não resisto à tentação de, com a devida vénia, transcrever parte de um belíssimo texto de Rui Vieira Nery*, musicólogo, professor da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e, como podemos ler, gastrónomo conhecedor e apreciador das melhores tradições culinárias portuguesas.
Chefes versus Cozinheiras
Um texto de Ruy Vieira Nery sobre as cozinheiras à antiga e os chefes da moda:
«Antigamente as cozinheiras dos bons restaurantes portugueses eram umas Senhoras rechonchudas e coradas, em geral já de idade respeitável, com nomes bem portugueses ainda a cheirar a aldeia – a D. Adozinda, a D. Felismina, a D. Gertrudes – e por vezes com uma sombra de buço que parecia fazer parte dos atributos da senioridade na profissão. Tinham começado por baixo e aprendido o ofício lentamente, espreitando por cima do ombro dos mais velhos. E tinham apurado a mão ao longo dos anos, para saberem gerir cada vez com mais mestria a arte do tempero, a ciência dos tempos de cozedura, os mistérios da regulação do lume. A escolha dos ingredientes baseava-se numa sabedoria antiga, de experiência feita, que determinava o que “pertencia” a cada prato, o que “ia” com quê, os sabores que “ligavam” ou não entre si. Traziam para a mesa verdadeiras obras de arte de culinária portuguesa, com um brio que disfarçavam com a falsa modéstia dos diminutivos: “Ora aqui está o cabritinho”, “Vamos lá ver se gosta do bacalhauzinho”, “Olhe que o agriãozinho é do meu quintal”. Ficavam depois a olhar discretamente para para nós, para nos verem na cara os sinais do prazer de cada petisco, mesmo quando à partida já tinham a certeza do triunfo, porque cada novo cliente satisfeito era como uma medalha de honra adicional. E a melhor recompensa das boas Senhoras era o apetite com que nos viam: “Mais um filetezinho?” ou “Mais uma batatinha assada?”.
Hoje em dia, ao que parece, nestes tempos de terminologias filtradas, já não há cozinheiros, há “chefes”, e a respectiva média etária ronda a dos demais jovens empresários de sucesso com que os vemos cruzarem-se indistintamente nas páginas da “Caras” e da “Olá”. Os nomes próprios seguem um abecedário previsível – Afonso, Bernardo, Caetano, Diogo, Estêvão, Frederico, Gonçalo, … – e os apelidos parecem um anuário do Conselho de Nobreza, com uma profusão ostensiva de arcaismos ortográficos que funcionam como outros tantos marcadores de distinção – Vasconcellos, Athaydes, Souzas, Telles, Athouguias, Sylvas… Quase nunca os vemos, claro, porque os deuses só raramente descem do Olimpo, mas somos recebidos por um exército de divindades menores cuja principal função é darem-nos a entender o enorme privilégio que é podermos aceder a semelhante espaço tão acima do nosso habitat social natural. A explicação da lista é, por isso, um longo recitativo barroco, debitado em registo enjoado, em que, mais do que dar-nos uma ideia aproximada das escolhas possíveis, se pretende esmagar-nos com a consciência da nossa pressuposta inadequação à cerimónia em curso.
A regra de ouro é, claro, o inusitado das propostas culinárias em jogo e, preferivelmente, a sua absoluta ininteligibilidade para o cidadão comum. Mandam, pois, o bom senso e o próprio instinto de auto-defesa que se delegue na casa a escolha do menu, sabendo-se, no entanto, que não vale a pena sonhar com que pelo meio nos apareça um pobre cabrito assado no forno, um humilde sável com açorda, ou uma honesta posta de bacalhau preparada segundo qualquer das “Cem Maneiras” santificadas das nossas Avós. Seja o que Deus quiser! E começam então a chegar a “profiterolle de anchova em cama de gomos de tangerina caramelizados, com espuma de champagne”, o “ceviche de vieira com molho quente de chocolate branco e raspa de trufa”, a “ratatouille de pepino e framboesa polvilhada com canela e manjericão”, e por aí fora, em geral com largos minutos de intervalo entre cada prato e o seguinte, para nos dar tempo de meditar sobre a experiência numa espécie de retiro espiritual momentâneo. […]»
* Nota: a meu convite, Rui Nery esteve no Sabugal em 2010 para pronunciar uma conferência intitulada «As Músicas da República», no âmbito das Comemorações do Centenário da República Portuguesa.
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«Na Raia da Memória», crónica de Adérito Tavares
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Dezembro de 2009.)
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