O meu plano é trazer aqui um resumo dos 38 meses e 11 dias da minha tropa: desde 21 de Julho de 1971 (entrada no Curso de Oficiais Milicianos da Escola Prática de Infantaria de Mafra) até 2 de Outubro de 1974 (aterragem no aeroporto militar de Lisboa, vindos de Luanda). Trarei apenas episódios marcantes, nunca esquecidos, que dormem acordados nos recantos da minha memória.
Vou hoje contar aqui pela primeira vez uma gama de emoções fortes que em certo dia, mais de 30 anos depois do fim da guerra, se apoderaram de mim no meio de Lisboa, por causa do que se passou lá, em Buco Zau e no Bata Sano, logo a seguir ao 25 de Abril.
Quando soubemos da Revolução dos Cravos
Isto foi assim: embora falássemos do Movimento dos Capitães, o que é facto é que não sabíamos em que dia a coisa ia avançar. Eu próprio tinha estado cá no 16 de Março, de férias, mas isso nada trazia sobre certezas quanto ao que depois aconteceu de facto.
Assim, vocês, os que cá estavam, viveram aquele momento (o 25 de Abril) enquanto nós lá, nada. Soubemos de tudo no dia seguinte. E foi uma festa, sim.
Mas não é disso que vou falar hoje: vou referir-me pela segunda vez na vida a um acontecimento passado mais de 30 anos depois de 1974, em plena Cidade de Lisboa.
Emoções muito fortes
É sabido que quem lá viveu aqueles dias recorda tudo com muita emoção.
No meu caso, ainda mais, pois fizemos um jantar de convívio com os guerrilheiros – agora já em tempo de paz e que nós desejávamos que nunca mais acabasse.
Um desses guerrilheiros, o comandante local, teve uma importância especial
Texto emotivo escrito há 10 anos
Este texto que segue foi escrito em 2008. É com emoção que o leio, mas nada que se compare quer com o momento em que o escrevi (há 10 anos) quer com o momento a que ele se refere (1974). É assim…
«Com a emoção na garganta: hoje revivi aqueles dias 26 e 27 de Abril de 74!
É muito raro, mas por vezes acontece-me: emociono-me mesmo a sério. Foi na Rua do Ouro. Na rua, mesmo. Ao telefone. Por caminhos que caminho, tive de ligar para alguém que me conduzisse a alguém. E eis que chego à fala com esse primeiro alguém. Palavra puxa palavra. Angola para cá, Luanda das nossas nostalgias para lá. Tudo normal até aqui.
De repente, a bomba: sai-me do outro lado da TMN uma pessoa que… imaginem… foi o comandante operacional da Zona Militar de Cabinda pelo MPLA, sediada na base de Dolisie, República Popular do Congo – vulgo, Congo Brazzaville.
Mas esse não foi o grande motivo da minha emoção. Ainda não. Mais um passo, nova pergunta minha:
– Então conhece Cabinda?
Resposta:
– Como a palma das minhas mãos.
Hesito. Vinha aí a minha emoção. Não sabia ainda, mas vinha. Surgiu logo na resposta à minha natural pergunta:
– Então, se calhar, conhece ou conheceu o Comandante Mabonzo que fez as pazes connosco, no Bata-Sano, a 26 e 27 de Abril de 74.
– Conheço muito bem. Fui instrutor dele.
Aí, deu-me mesmo aquele aperto. Perguntei:
– Ele é vivo?
Respondeu:
– Sim.
Eu pedi:
– Pode dar-lhe um abraço quando o vir? Ele não se lembrará do meu nome, mas de certeza lembra-se de mim: depois do 25, ele contou-me que num certo dia tinha a arma apontada a mim numa subida de Buco-Zau para o Dinge, eu no Unimog com o meu grupo de combate e ele na mata emboscado com o seu, e que não disparou porque era eu e o meu grupo todo de fita branca no tapa-chamas da G3… E outra história de que ele se lembrará é a da noite em que, mais de meia-noite, o médico e vários amigos meus, na ambulância para não serem atacados, me levaram café ao meio da mata – e ele, Mabonzo, com o seu grupo, estava ali mesmo emboscado, a guardar-nos, segundo me contou… depois, quando as pazes já estavam feitas, disse-me que lhe tinha apetecido ir ter connosco a pedir-nos café… E eu disse apenas: Mas porque não foste. Claro que te dávamos o café…
O meu interlocutor acho que estava quase tão apardalado com a minha história como eu estava excitado a contar, a contar…
E, não tenho vergonha nenhuma de confessar: num dado momento, vieram-me umas aguazitas aos olhos.
Foi em Lisboa hoje, mas foi em Cabinda há 34 anos e um mês, quase.
Bom dia para si também, leitor»
Isto é muito, muito sério… cá dentro…
Até para a semana, meus amigos!
(Continua.)
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«1971-74 – Os Dias da Tropa», por José Carlos Mendes
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