Viajar hoje é quase obrigatório. Toda a gente gosta de mostrar aos amigos uma foto tirada algures longe da morada. Organizam-se excursões para visitas cá e lá fora, com viajantes que, por vezes, mal têm para comer. Mas, como é moda, toda a gente viaja.
>> ETAPA 2 >> VIAJAR CÁ DENTRO…

1 – Viagens cá dentro, como aperitivo
Desde pequenino que viajei e até vi o mar. Efectivamente, a conselho médico, meu irmão, que tinha escrófulas, teve de ir para a praia para apanhar iodo. Porque na Parede, praia com muito iodo, se fixara um quadrazenho- o Tó Borrega (mais conhecido pelo Tó Coixo), meu pai escolheu essa praia, tendo-lhe alugado uma casa no Murtal. Acompanhei durante dois verões minha mãe e meu irmão. Connosco também foi a ti Belmira do Engenheiro com o filho Jaime e não sei se também o irmão Flozindo. Tive, pois, a sorte de conhecer o mar e o comboio, coisas vedadas à maioria dos portugueses do interior nessa época. Parece que eu não era muito amigo de entrar na água, sendo necessário o banheiro meter-me nela à força, o que provocava enorme berreiro da minha parte.
Com a minha idade, uns quatro a cinco anos, lembro-me de pouca coisa. Lembro-me, no entanto, dos Robertos, que faziam as delícias da miudagem. Também recordo as vendedoras de bolos numa grande lata que abria junto ao fundo. No caminho feito a pé do Murtal para a praia havia figueiras a quem, de vez em quando, aligeirávamos de alguns figos. Foi numa destas estadas que minha mãe aprendeu a dar injecções com uma médica do Murtal, arte que havia de beneficiar tantos quadrazenhos a quem ela socorria, sem cobrar um tostão. E quantos não incomodavam quando se apresentavam em casa à hora das refeições.
2 – Idas e vindas do seminário para Quadrazais
Aos 11 anos, terminada a 4.ª classe em 1954, fui estudar para o seminário de Vila Viçosa, terras onde meu pai vendia fazendas como ambulante. Fazia, normalmente, três viagens de ida e volta por ano. Em fins de Setembro para Vila Viçosa, pelo Natal, de regresso a Quadrazais e, passadas as férias, de novo para Vila Viçosa; novamente de Vila Viçosa para Quadrazais na Páscoa e regresso a Vila Viçosa, acabadas as férias, para regressar para as férias grandes no Verão. Utilizávamos as carreiras da Setubalense até Castelo Branco e depois seguíamos nas camionetas do Martins Évora até ao Sabugal, ou vice-versa, conforme o sentido da viagem. Por vezes dormíamos em Castelo Branco, por não haver ligação para o Sabugal, e tivemos tempo de visitar esta cidade, onde me lembro de ter comprado um corta-unhas e um espelho com o emblema do Benfica por trás. Ficávamos numa pensão por cima duma taberna, do mesmo dono. Recordo que, certa vez, o José Luís Esteves da Lageosa, ou da Aldeia do Bispo, bebeu a água toda do jarro com que havíamos de lavar-nos na manhã seguinte. Doutra vez, pelo Natal, visitei a Covilhã, onde aguardei pelo nascer do dia com outros colegas à fraca lareira da casa de minha tia, ausente, mas que deixava a porta encostada.
Em Fronteira fazíamos uma paragem no largo principal. Dava tempo para dar uma olhadela pelo centro da vila e comer uma sandes de chouriço. Uma vez comprei aí um pacote de trigo roxo para apanhar pardais. E isto durante uns três anos dos cinco que estudei em Vila Viçosa. Nos dois últimos, como éramos muitos os naturais do concelho do Sabugal, passámos a alugar uma camioneta da Viúva Monteiro de Vila Viçosa directa ao Sabugal e vice-versa.
Alguns superiores da região acompanhavam-nos na camioneta. Lembro-me que, numa dessas viagens, parámos em São Miguel d’Acha, terra do Padre Patacas, meu prefeito no 2.º ano. Brindou-nos com um cesto de trigo e umas azeitonas, que souberam a iguaria, tal era a vontade de comer algo que já tínhamos. Não me dava com carros e camionetas. Por isso, muitas vezes vomitei no caminho, chegando ao destino mais morto que vivo. Minha mãe enviava a burra ao Sabugal pela criada Cesaltina para transportar as malas do Tó, as minhas e, uma vez, as do Júlio, colega duma terra vizinha, que não tinha, como nós, ligação para a sua terra e foi ficar em nossa casa. Choveu que fartou nessa tarde. No regresso das férias do Natal, enquanto esperávamos pela carreira do Martins Évora, ou a alugada da Viúva Monteiro, metíamo-nos no forno de um sabugalense, por trás do Depósito, a aquecer-nos.

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3 – Seminários de Vila Viçosa e de Évora
Ainda em Vila Viçosa, no meu 5.º ano, em 17 de Maio de 1959, por ocasião da inauguração do monumento a Cristo-Rei em Almada, viemos a esse evento, tendo tido a ocasião de visitar o Portinho da Arrábida e a sua gruta com a imagem de Santa Margarida, e ainda o Conventinho, em plena montanha, que agora é Pousada, para além dos cruzeiros (calvários) e abrigos onde os frades permaneciam em contemplação. Aqui escreveu os seus versos Frei Agostinho da Cruz. A fotografia apresentada à porta do Conventinho mostra Frei Martinho da Arrábida com a boca, olhos e ouvidos fechados e o coração com uma fechadura. Na mão tem uma vela e um suplício para os frades se flagelarem.


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No feriado de 10 de Junho de 1960, no Seminário de Évora, fomos a um passeio até ao Bussaco, Coimbra, Braga e Fátima. No Bussaco visitámos a mata e o palácio de D. Fernando II transformado em hotel. Em Coimbra visitámos o convento de Santa Clara-a-Velha e a Nova, a Universidade com a sala do Capítulo e a Biblioteca, uma Faculdade, onde um professor nos deixou espreitar pelo microscópio, Igreja de Santa Cruz, museu Machado de Castro e Conimbriga. Em Braga visitámos o Sameiro e o Bom Jesus.

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Enquanto frequentei o seminário, fiz outras viagens. Era hábito haver um encontro durante as férias grandes. Assim, em 1960, nas férias de Verão, houve encontro em Singeverga. Visitámos a região: Roriz, Paredes (Nossa Senhora d’Assunção) e Santo Tirso, tendo ficado 8 dias no convento de Singeverga, entre os beneditinos. Recordo o bom vinho verde que nos serviam ao almoço, bebido por tijelas, produto da quinta dos frades. É no convento que se continua a produzir o famoso licor de Singeverga, cuja venda contribui para a manutenção dos frades.
No regresso a Quadrazais, tive de dormir no Porto, ocasião para conhecer um pouco dessa cidade. A pensão era das mais baratas, na Baixa, e não faltavam os percevejos nas camas.
Fátima foi outro local de encontro, tendo nessa ocasião também visitado Tomar e o seu convento. Em Fátima dormimos no seminário do Patriarcado. Foi aí que assisti à primeira missa em rito oriental.
No 10 de Junho de 1961, no Seminário de Évora, fomos até ao Algarve. Visitámos o Cabo de São Vicente e Sagres, em cuja porta estava um quadrazenho da família do Rui Lourenço, vendendo bonés e outros artigos, fazendo jus aos ambulantes ou contrabandistas quadrazenhos, a Praia da Rocha, Ferragudo, ruínas de Estói e Faro, com visita à Catedral, ao Museu e ao Colégio de Santo António do Alto, que devia ser da Diocese.
No regresso a Évora, perto de Portel avariaram as luzes da camioneta e tivemos de regressar a Évora escoltados por um GNR motorizado.
4 – Enormes distâncias percorridas a pé…
Sabido é que o quadrazenho percorria enormes distâncias a pé, de cavalo ou de carroça por esse Portugal de norte a sul, vendendo as suas fazendas, como ambulantes. A volta do meu pai era de Nisa até Évora, embora nos últimos tempos se fixasse mais por Nisa até Estremoz. Também experimentei o sabor de calcorrear grandes distâncias a pé. Em 1961 acompanhei-o a pé de Quadrazais a Nisa, com intervalos montado na carroça, para o ajudar a carregar os fardos da fazenda, pois ele havia partido duas costelas. Dormimos uma noite em Penamacor e a seguinte foi já na estalagem da ti MariBaça em Nisa. Azar, não sei se por ter bebido água num riacho que adoeci com febre intestinal e regressei de camioneta no dia seguinte. Pelo caminho ficou a minha flaita, que eu por vezes ia tocando pelo caminho, a ajudar a passar o tempo.
5 – Visita ao Cartaxo
Já saído do seminário e frequentando a Universidade, aí pelo 4.º ano, fui até ao Cartaxo no carro do meu colega Chico, não para ir a termas no Cartaxo, mas tão só para ver a amiga quadrazenha Clarisse num dia 1 de Novembro, onde assistimos à última tourada da época. Nem sei se provámos o tinto do Cartaxo. É provável que sim, e que tenhamos feito o brinde do «Bota abaixo, à moda do Cartaxo!», já que almoçámos por lá e, nesse tempo, o condutor ainda podia beber uns copos sem ser incomodado pela Polícia de Viação e Trânsito, a PVT.
6 – Caça em Sousel
No tempo da caça fui algumas vezes até ao Guadiana e Sousel e, pelos tordos, até ao Alandroal e também Sousel, para além doutros lugares mais próximos de Lisboa, como a zona de Torres Vedras ou da Abrigada. No Verão, aquando da abertura da caça, até íamos de véspera, dormindo debaixo dum chaparro, com uma grande jantarada bem regada. Bons tempos em que se podia beber à vontade! Caçar muito ou pouco, ou mesmo apanhar uma grade não era motivo de preocupação, desde que a almoçarada fosse boa.
7 – O meu primeiro carro foi um Mini
Durante as férias de Verão de 1970, fui no meu mini, meu primeiro carro, fazer uns dias de campismo em Vieira de Leiria, acompanhado do amigo Severino, atrás das saias da minha namorada, com quem haveria de casar, cuja mãe aí passava férias. Foi agradável passar esses dias na praia e apanhar uns peixinhos saídos das redes dos pescadores puxadas ainda por juntas de bois, com que o Severino faria um almoço acompanhado de batatas. Lembrámo-nos de ir uma noite a um baile em Pedrógão, o que provocou uma zanga entre mim e a namorada.
8 – Promessa pelo meu irmão que estava em Moçambique
Uma vez fui de boleia com o Sr. Norte, sogro do meu irmão, até à Benedita e depois noutra boleia até à terriola ali perto onde dava aulas minha irmã Maria. Regressei à boleia um dia ou dois depois. Com o Sr. Norte haveria de visitar Coruche e almoçar no Al Corucen, todo ele de paredes cheias de símbolos tauromáquicos, não estivéssemos nós no Ribatejo.
Por ter uma irmã a residir em Alcobaça, muitas vezes a fui visitar à boleia e, já no carro com ela, as grutas de Mira d’Aire, Fátima, etc.
Já em carro próprio, aí fui passar a noite da Consoada, em família, durante anos, muitas vezes ainda com minha mãe viva.
A Fátima haveria de ir com minha mãe e família para cumprir uma promessa feita por ela por meu irmão enquanto esteve na guerra em Moçambique. Tive de fazer uns 5kms a pé, pois tal mandava a promessa.
Visitei Óbidos, algumas vezes, Caldas da Rainha e a igreja hexagonal do Senhor Jesus da Pedra mais que uma vez.
9 – Viagens de Estudo
a) Num certo ano da frequência da Faculdade de Letras, talvez pelo 3.º ou 4.º ano, fui a Coimbra à Queima das Fitas numa camioneta alugada, com o Prof. Luís Filipe Tomás, o Tonho Rodrigues, que viria a ser catedrático de Clássicas, e gente da Delegação (a Manuela, a Maria Emília, o Jorge Rangel e outros que aparecem na primeira fila da foto em baixo). O Luís Filipe passou toda a viagem a contar anedotas, sem interrupção, mesmo sobre o tio e a esposa Gertrudes.

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Em Coimbra visitámos a parte velha da Universidade, a biblioteca de D. João V e Sala do Capítulo, a porta férrea e a cabra, para além de uma ou duas Repúblicas, em que dois estudantes aí instalados nos contaram a história das mesmas. Creio que visitámos o Museu Machado de Castro, onde era conservadora a Matilde, afilhada dos pais do Luís Filipe, e que haveria de casar com o Dr. Sousa Franco, as ruelas da Almedina e outras e na Baixa a Igreja de Santa Cruz. Não me recordo se assistimos a alguma sessão de fados de Coimbra.

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Assistimos ao cortejo pela Baixa, lembrando-me de cenas caricatas de um estudante totalmente bêbedo no estribo do carro, a vomitar segurado por uma bengala de outro dentro dum carro.

b) No 4.º ano da Faculdade de Letras de Lisboa, pela Páscoa de 1967, fomos com o Prof. Lindley Cintra numa excursão para inquéritos linguísticos a Guadramil, Duas Igrejas e Miranda do Douro e passámos por Quadrazais, onde deveria deixar um caixote de meu irmão Tó com zagaias e demais recordações que ele trouxera de Moçambique. Aí fizemos um magusto com castanhas que minha mãe guardava num pipo com areia, onde se conservavam bem. Foi um magusto em Maio que o Ruy Belo, que integrou a excursão, celebrou num poema. Não menos nós o celebrámos com vinho dos meus pais a emborcar ao som de: Filinto Elísio, da velha França, enche-me a pança deste licor. E bota abaixo à moda do Cartaxo! Regressámos por Sortelha e outros locais que não recordo. Estivemos em Bragança, Vilarinho da Samardã e demais terras de Camilo, Barragem do Pocinho, onde dormimos numa camarata, já não sei se de hotel, Duas Igrejas, na hora da procissão da Páscoa, e noutros locais cujos nomes a memória já não consegue avivar, salvo se lá voltasse e os reconhecesse.
(Fim da Etapa 2.)
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«Viagens dum Globetrotter», por Franklim Costa Braga
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