Caros leitores destas despretensiosas crónicas: vamos hoje retomar o caminho da «pequena história», abordando algumas curiosidades que nos ajudam a compreender melhor o nosso quotidiano actual. E aproveite para descobrir a origem da expressão: «Já lhe tiraram os três!»

Os Romanos eram extremamente supersticiosos. Tentavam conhecer a vontade dos deuses através de práticas de adivinhação, feitas por sacerdotes chamados áugures (daí algumas expressões ainda hoje usadas, como «bons augúrios» ou «ave de mau agoiro» ou «agoirento»). Aliás, em italiano, para saudar alguém e desejar-lhe «boa sorte» diz-se «auguri!».
Os sacerdotes romanos estabeleciam periodicamente os dias bons e maus, isto é, os dias de sorte e os de azar (dias fastos e nefastos). Ninguém se atrevia a tomar decisões importantes em dias nefastos. Se virmos bem, ainda hoje há pessoas que pensam de maneira semelhante, como, por exemplo, quando consideram a «sexta-feira, 13» dia de «azar».
Herdámos muita coisa dos Romanos – a língua, a arte e a literatura, o direito e a administração, o urbanismo, o cristianismo, etc. E também boa parte das práticas supersticiosas: veja-se, por exemplo, o costume de usar amuletos. As crianças romanas traziam, pendurada ao pescoço, uma bulla(1), isto é, um colar de forma arredondada, que podia ser de ouro ou de prata (no caso dos ricos), de bronze ou de couro (no caso dos pobres). Era um amuleto para lhes «dar sorte» e usavam-no, no caso dos rapazes, até atingirem a idade de vestir «toga viril», aí pelos 15 ou 16 anos. No caso das raparigas, só retiravam a bulla quanto casavam.

Em duas das fotografias aqui reproduzidas podemos ver crianças romanas com bulas ao pescoço. Uma dessas imagens mostra-nos um pormenor do Altar da Paz (Ara Pacis), mandado erguer pelo imperador Octávio César Augusto em Roma e inaugurado no ano de 9 a.C. Neste baixo-relevo encontram-se representados vários membros da família de Augusto, como por exemplo o seu genro Agripa (A), Lívia Drusa, segunda esposa do imperador (B) e Tibério, enteado e sucessor de Augusto (C). As crianças (D) têm ao pescoço a bula de ouro. Assinalado com a letra E vemos um pequeno escravo, que veste uma túnica curta, enquanto as crianças de condição social elevada vestem a toga infanto-juvenil. O escravinho não usa a bula, mas uma espécie de gargantilha (o Torque), muito provavelmente de bronze.
Noutra das fotografias podemos observar uma pedra tumular romana do século II d. C. O alto-relevo representa um casal com um filho que morreu criança. É comovedora a atitude carinhosa da mãe, a oferecer figos e uvas ao menino. Note-se, ao pescoço, a Bula. A presença de passarinhos era habitual nas cenas alusivas à morte de crianças.

Houve regiões da Europa onde essas tradições foram resistindo durante séculos, ou ressurgiram mais tarde. Em Espanha, por exemplo, mesmo ao nível mais elevado da sociedade, usava-se todo o tipo de amuletos para afastar o «mau-olhado», ou a doença, ou a morte. Reproduzimos aqui um dos vários retratos pintados por Velázquez ao serviço da corte espanhola: trata-se do pequeno Filipe Próspero, Príncipe das Astúrias, filho de Filipe IV. Tinha nesta altura (em 1659) apenas 2 anos de idade e era uma criança enfermiça (morreu com 4 anos, em 1661). Coitadinho, apesar do nome, «prosperou» pouco. E de pouco lhe valeram os amuletos e talismãs que usava, espalhados por todo o corpo, entre os quais uma figa de azeviche, uma esfera olho-turco, um cornicho (também de azeviche) e um chamador-de-anjos. Note-se que, além destes amuletos, o menino tinha também pendurado um sininho de ouro, para espantar as bruxas e os maus espíritos.
Trata-se de uma obra tardia do grande Diego da Silva Velázquez (de ascendência portuguesa), que reflecte uma enorme tristeza no rosto do pequeno príncipe, contrastando com a vivacidade do olhar do cãozinho, um cocker-spaniel. Aliás, paira nesta obra-prima uma certa melancolia, própria de um pintor que olha compassivamente esta criança doente quando ele próprio se encontra já no ocaso da vida (morreu um ano depois, em 1660).

Em Portugal, as mães das meninas colocavam-lhes ao pescoço, desde que nasciam, uma moeda de prata de três vinténs (60 réis), furada junto ao rebordo, e suspensa por um fio de cabedal ou um cordel. Para «dar sorte». E a rapariga trazia sempre consigo essa moeda, por baixo da roupa, até casar. Retirava-a definitivamente depois da noite do casamento, altura em que «perdia os três vinténs». Daí a expressão popular, algo pejorativa, sobretudo quando pronunciada pelos rapazes mais atiradiços: «Já lhe tiraram os três.»
Noutra das fotos que ilustram esta crónica podemos observar várias moedas de três vinténs furadas, cunhadas em reinados dos séculos XVII (D. Pedro II), XVIII (D. João V e D. José) e XIX (D. João VI e D. Miguel). Foram certamente usadas ao pescoço por muitas jovens portuguesas de sucessivas gerações. Não sabemos quem foram, nem se tiveram sorte ou azar. Mas acreditaram que estavam mais protegidas, porque as suas mães lhes garantiam que sim.
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(1) A palavra latina «Bulla» significa «Bola», isto é, qualquer objecto que fosse arredondado, circular, como era o caso do amuleto de que aqui falamos. No entanto, a palavra é mais conhecida para referir um documento papal: por exemplo a «Bula Manifestis Probatum», endereçada ao rei D. Afonso Henriques pelo papa Alexandre III, em 1179, na qual reconhecia o Reino de Portugal. É uma espécie de «certidão de nascimento» do nosso país. Estes documentos são genericamente chamados «bulas» porque o seu selo (de chumbo, de lacre ou, mais raramente, de ouro) tem a forma circular, ou seja, de uma «bola».
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«Na Raia da Memória», crónica de Adérito Tavares
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Dezembro de 2009.)
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