Em 1958, Aquilino Ribeiro publicou o romance «Quando os Lobos Uivam». Considerado pelo regime salazarista ofensivo e injurioso relativamente às instituições e ao poder, levou à apreensão da edição pela PIDE e à instauração de um processo-crime ao ilustre escritor. Entre as várias acusações que lhe eram feitas salientava-se aquela em que Aquilino afirmava que Portugal era um «país de pé-descalço», o que, na opinião dos acusadores, «denegria o prestígio internacional do país». Trezentos intelectuais portugueses e estrangeiros subscreveram um manifesto de apoio ao escritor e, no Brasil, onde se encontrava exilado, Adolfo Casais-Monteiro escreveu um notável prefácio num pequeno livro de defesa de Aquilino intitulado «Quando os Lobos Julgam, a Justiça Uiva».
«[…]
Fico olhando esses sinais
da pobre gente que avança
e noto, por entre os mais
os traços miniaturais
duns pezitos de criança…
E descalcinhos, doridos…
a neve deixa inda vê-los,
primeiro, bem definidos,
depois, em sulcos compridos,
porque já não podia erguê-los! […]»
Augusto Gil, Balada da neve (1909)
Na verdade, a questão do «pé-descalço» nem era a principal crítica de Aquilino ao regime de Salazar. Há outra passagem de «Quando os Lobos Uivam», situada no tribunal onde Manuel Louvadeus (o protagonista do romance) está a ser julgado, que revela melhor o sentido e o objectivo fundamental desta obra-prima aquiliniana. Quando o juíz lhe pergunta: «Sabe quem nos governa?», Manuel Louvadeus responde: «Eu sempre ouvi dizer que quem governa o mundo é o Raimundo, mas deve ser filho de má mãe porque isto vai de mal a pior!»
O processo contra Aquilino Ribeiro foi arquivado, provavelmente porque o regime do Estado Novo receou as repercussões nacionais e internacionais desta perseguição.
Mas, afinal, em 1958, Portugal era ou não «um país de pé-descalço»? Era, claro que era. Lembro-me bem: na minha terra, Aldeia do Bispo, onde fiz a quarta classe, boa parte dos meus colegas andavam descalços. E muitos adultos, se não andavam descalços usavam albarcas (pedaços de pneu atados com cordéis) ou alpargatas de pano. Aqui há tempos, em casa dos pais de um amigo meu, numa aldeia do Alentejo, reparei na ampliação de uma fotografia pendurada numa parede, feita no pátio da escola primária lá da terra, onde estavam cerca de trinta rapazes. Raros eram os que tinham sapatos.
Muitos dos visitantes estrangeiros que fotografaram o «povo português» nos anos trinta, quarenta ou cinquenta do século passado deixaram impressionantes testemunhos desses tempos, como foi o caso dos fotógrafos franceses Jean Dieuzaide e Henri Cartier-Bresson. E, se consultarmos os volumes relativos a essas décadas da obra «Portugal – Século XX». Crónica em Imagens, coordenada pelo jornalista Joaquim Vieira e publicada pelo Círculo de Leitores, encontraremos muitas fotografias que comprovam essa realidade.
O governo da Ditadura Militar, em 1928, publicou legislação a proibir o «pé-descalço», sob pena de multa. Claro que a miséria popular já vinha de trás, como mostra o conhecido poema de Augusto Gil que quase todos, na escola primária, sabíamos de cor. Cito um texto do Diário de Notícias sobre este tema, publicado em Agosto de 2016: «O fenómeno do pé-descalço era em boa parte explicado pela pobreza, mas tinha também que ver com hábitos enraizados nos portugueses. E a decisão política da proibição, há muito defendida pelos republicanos mas só tomada já depois do 28 de Maio de 1926, surgiu na sequência de uma campanha da Liga Portuguesa de Profilaxia Social contra o ‘indecoroso, inestético e anti-higiénico hábito do pé-descalço’.»
Claro que nesses tempos conturbados Portugal não era uma excepção. Pior, muito pior, viviam outros povos da Europa: na Ucrânia de 1931-33 morreram milhões de pessoas à fome, como consequência da política de colectivização agrícola estalinista. E aqui bem próximo de nós, em Espanha, na raia salmantina e cacerenha, vivia-se na miséria extrema, conforme nos é mostrado no impressionante documentário de Luis Buñuel, «Las Hurdes, Tierra sin Pan», de 1932. O problema, em Portugal, foi o “pé-descalço” ter-se prolongado por demasiado tempo, até pelo menos ao grande surto de emigração dos anos sessenta. E não apenas o “pé-descalço”, também vários outros sinais de subdesenvolvimento, como os “bairros de lata” da periferia das grandes cidades ou a existência de numerosos “pobres de pedir”, que andavam de porta em porta.
Não sou defensor de um olhar «pedagógico» ou saudoso sobre as «lições do passado» (no meu tempo é que!…). Ainda bem que hoje não abundam as crianças de «pé-descalço» (infelizmente ainda há algumas). Ainda bem que existem cantinas nas escolas e a assistência social apoia as famílias carenciadas.
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«Na Raia da Memória», crónica de Adérito Tavares
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Dezembro de 2009.)
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Uma reflexão muito clara e oportuna do modo de vida da 1ª metade do século XX, e que no caso português justificará o fluxo de emigração da época.
Gostei deste texto que faz reflectir sobre o passado com projecção. Ainda, hoje, há cidadãos que revelam uma vaga sensibilidade social, como Augusto Gil, quanto aos problemas sociais de pobreza. Outros, como Aquilino Ribeiro e A. Casais Monteiro, procuram, numa solução Política, a Justiça Social.Acima de tudo, da assistência social, das IPSS…, defendo a Justiça Social.