O meu plano é trazer aqui um resumo dos 38 meses e 11 dias da minha tropa: desde 21 de Julho de 1971 (entrada no Curso de Oficiais Milicianos da Escola Prática de Infantaria de Mafra) até 2 de Outubro de 1974 (aterragem no aeroporto militar de Lisboa, vindos de Luanda). Trarei apenas episódios marcantes, nunca esquecidos, que dormem acordados nos recantos da minha memória.
Esta semana li que em Buco Zau («Buraco do Elefante» – é esse o significado) as chuvas têm sido muito castigadoras para os moradores.
Há oito ou nove anos, uma enorme manada de elefantes rebentou com mais de 50 terrenos de cultura dos habitantes de Buco Zau. E há dois anos um elefante atacou um residente local e matou-o
Estas são ligações que se mantêm sempre, depois de ter passado vinte e tal meses com uma farda em cima e com a responsabilidade de, naquelas terras, levar 25 e trazer 25 companheiros de sorte malfadada. Mesmo que não se queira, as notícias entram mas não saem de nós.
Já lá vão 44 anos
Se regressámos em Outubro de 74, já lá vão bem mais de 40 anos…
E como era Cabinda – e especificamente Buco Zau – há 40 anos? Como era a terra, o clima, a floresta? Como eram as pessoas?
São tantas e tantas as coisas que há para dizer, a fim de que o leitor fique industriado sobre estas questões, que só posso escrever sobre cada capítulo uma a duas frases, ou então isto nunca mais acaba…
Tanto que há para dizer para deixar aqui uma caracterização da terra e das gentes minimamente descritiva…
A terra e as gentes
As pessoas eram muito comunicativas. Nem parecia que se estava em guerra. Eram mesmo simpáticas connosco. Comigo e com os médicos, sobretudo: os médicos porque lhes davam medicamentos para eles e para os filhos; eu talvez pela minha postura sempre do lado deles e também porque dava aulas na Escola Preparatória lá da terra. E talvez também porque adoptámos (a minha companheira de vida foi lá ter comigo, tal como outras mulheres de malta da tropa e até se mandou fazer um bairrozito onde todos morávamos)… adoptámos, dizia, uma criança local, de doze anitos que era meu aluno também, e a quem vestíamos e alimentávamos lá em casa durante o dia.
Muitas destas pessoas cultivavam as suas hortas junto das sanzalas e vendiam a comerciantes e a intermediários que vinham ali carregar os camiões… pagando mal e enganando nos pesos!
Um dia, um camarada alferes até se deu ao trabalho de mandar pesar novamente o café… e o que ele descobriu foi um roubo enorme no peso. Esse gesto dele foi muito lembrado sempre pelas pessoas da terra, claro!
O clima
Nestes meses passa lá na região sub-equatorial a época das chuvas: temperaturas de 30 a 40º C, muita chuva, muitos charcos, muita plantação estragada.
Na época quente, entre Abril e Outubro, as temperaturas chegavam em Buco Zau perto dos 50º C.
Os animais destas terras
São tantos os animais típicos destas zonas que uma enumeração é quase impossível. Falarei dos que mais me marcaram:
– Elefantes – muitos e enormes, pachorrentos e alguns dirigindo-se, ao que nos contavam, para o grande Buraco do Elefante (Buco Zau, claro), que haveria no mieo da floresta virgem, e para onde se dirigiam instintivamente, para ali morrerem – não sei se era verdade, se era lenda, mas os indígenas assim nos contavam a coisa…
– Águias – enormes, muitas, sempre a sobrevoar as nossas viaturas, sei lá porquê… Algumas com grandes cobras, penso que gibóias, penduradas das mandíbulas…
– Cobras – de vários tipos: surucucu, gibóia etc. Uma das mais perigosas era a cobra da palmeira: os tipos que iam lá acima buscar os frutos, se lá vissem esta cobra, atiravam-se ao chão com medo – e muitos assim morreram, diziam-nos.
– Melgas – que animal bravio! Como saberá eram elas que nos transmitiam o vírus do paludismo… E eram aos milhões! Nas casas, no quartel, na mata… por todo o lado.
– Formigas – Muitas, enormes, deslocando-se em filas intermináveis que até davam a volta à casa… e lá seguiam em direcção ao Rio Luáli.
– Macacos – de várias raças, tão bonitos e tão parecidos connosco, os humanos, que até incomodava. Um dia conto aqui histórias de famílias de gorilas a deslocarem-se pela mata e a atravessarem as picadas nas calmas, em plena guerra e até com o barulho dos tiros a perturbarem os humanos… O que mais havia era: chimpanzés e gorilas.
A floresta virgem e seus mistérios
Nunca chegarei a perceber o porquê da tão grande atracção que esta maravilha mundial (floresta virgem) exercia sobre nós. Era como viver em eterno momento de contemplação. Só o percebe quem passou por algo equivalente: fica gravadíssimo para sempre – como se ainda lá estivesse…
Os poços de petróleo no mar
Sabe-se que há (havia?) muito petróleo no subsolo de Cabinda e que os americanos da Cabinda Gulf Oil eram os concessionários do nosso Estado para esse produto. Nunca mais me esqueço de um número: o preço do crude nessa altura. Era de 35 dólares o barril. A exploração efectiva, ao que sei, era feita nas plataformas submarinas, com as grandes instalações industriais à vista sobretudo na zona de Cabinda, a capital.
Os poços de petróleo selados na floresta
No meio do mato, a questão era outra: já havia locais identificados para exploração futura e lá estavam as placas a marcar território: Cabinda Gulf Oil – lembram-se do nome desta empresa super-famosa no início dos anos 70, na exacta altura em que eu estava em Cabida? Era essa mesma…
A Fazenda Alzira
Uma nota regional com interesse: a maior fazenda em Buco Zau era a Fazenda Alzira. Milhões de toneladas de café colhidas e exportadas em dezenas e dezenas de anos – segundo me foi contado.
De notar que o «manda-chuva» todo poderoso da fazenda Alzira era o Sr. Viriato, de Penamacor.
A madeira e os madeireiros
Uma das maiores riquezas de Cabinda: a madeira retirada da floresta virgem. Os madeireiros, com os camiões sempre a rebentar pelas costuras – carregadérrimos de troncos super-grossos, gigantescos, eram os transportadores dessa riqueza, ao serviço de randes empórios protegidos pelo regime da altura…
Finalmente: o Rio Luáli
O rio que eu tinha a 30 metros da minha porta… Chamava-se Luali = rio do ouro. E tinha mesmo ouro, contava-se…
Um dia conto umas histórias desse ouro e de alguns graduados da tropa dessa altura (contrabando).
(Continua.)
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«1971-74 – Os Dias da Tropa», por José Carlos Mendes
Na verdade eu vivi en Buco Zau em 1972 até 1974, o meu pai era militar e fiz lá a 4.ª classe e o 1.° ano do ciclo. Do que me lembro além do que descreveu era das matacanhas e dos miruins mosquito quase microscópio mas que provocava muita comichão e pápulas enormes, na fazenda Alzira íamos ao cinema a noite, saudades da floresta de maiombe onde brinquei muito.
Olá, Teresa. O seu nome de família leva-me para lá, de facto… Posso estar errado, mas acho que o seu Pai era Sargento. Por acaso sabe de que Companhia ele era? Se me disser o nome do Capitão dele, eu digo o resto, OK? O Pai ainda vive, espero. Se assim for, como desejo, aqui lhe deixo um grande abraço. Ele deve lembrar-se de mim: era Alferes Miliciano (Mendes, claro, como já sabe).
Obrigado por ter entrado nesta ronda!
Volte sempre.
Os melhores cumprimentos da minha parte.
Permitam que, em nome da verdade, complete a lista de animaizinhos que nos lixavam a cabeça lá naquelas paragens, porqu eapareciam às centenas em casa e até no quartel:
– as osgas e
– as baratas…