A minha intenção é sempre a mesma. Avivar a memória da cultura de Quadrazais para que não se perca, sobretudo entre os jovens que não nasceram ou não cresceram em Quadrazais, tendo ouvido apenas dos pais e avós algumas histórias e cenas da vida quotidiana da terra onde haviam nascido, tão longe do local onde agora se encontram. Na «Novela na Raia» vou utilizar personagens reais da aldeia, tentarei descrever quadros da aldeia e narrar os factos do dia-a-dia, embora não obrigatoriamente protagonizados por estas personagens. (Episódio 21).

III – CONTRABANDISTA A SÉRIO
Episódio 21
Quantas vezes não voltou o Miguel a Valverde!…
Agora, com quinze anos, já trazia carregos maiores. Já usava uma saca atada a modo de carrego para transportar às costas. Era mais cómodo e podia já alombar com uns dez quilos, tantos quantos os pacotes de café que levava para lá. Já trazia dois ou três pães, umas boinas, uns cortes de pana, uns véus e uma ou outra colcha encomendados. E ainda lhe sobravam as mãos para as latas de pimento e de azeite. Galhetas, caramelos e alguma gulodice mais eram para carregar a Lucinda. Ganhou algum dinheirito, dando parte à mãe, mas arrecadando outra parte para a sua futura festa da inspecção.
A conversa com a Palmira ia pelo melhor. Já se aproximava dela e da irmã no caminho para Valverde, embora ainda nada de intimidades. Desconfiava que a mãe dela, a Crece, já sabia do seu namorico. Mas nada deixava transparecer.
Um dia arriscou pedir à irmã que indagasse esse assunto. Ela assim o fez uns dias mais tarde. A Palmira havia recebido a pergunta com um sorriso, que a Lucinda entendeu como sendo um «sim». Mas não adiantaram mais conversa. O tempo haveria de confirmar tudo.
Qual não foi a sua raiva de ciúmes quando, ao passar no Vale, viu a Palmira a galrar com o filho do Bumbana em frente da porta deste. Ficou fulo e nem mais quis falar com ela. Odiou ainda mais o Bumbana, com quem andara ó barulho por aquele lhe ter posto o cuspo no nariz, atiçado p’o Maneta e p’o Home das Bichês. Haviam de ajustar contas novamente.
A Lucinda via-o cabisbaixo e perguntou-lhe a razão. Acabou por contar-lhe o que vira. A irmã tentou acalmá-lo e ficou de saber o que se passara. E assim fez. Procurou a Palmira. Esta alegrou-se com a visita, pois estranhava que o Miguel não mais a tivesse procurado. Soube então que a Palmira procurara a Gisela Bumbana e que o irmão desta lhe dissera que ela tinha saído. E ficaram a conversar sobre a irmã. Era tudo. A Palmira pediu-lhe que dissesse ao Miguel que ela gostava dele. O recado foi transmitido ao Miguel, cujo coração se acalmou e rondou a casa da Palmira para ver se a via. Ela estava à janela de sua casa e os olhares de um e outro encontraram-se. Não foi difícil ao Miguel ler nos olhos dela a alegria de o ver. Ele também sentiu o seu coração sobressaltar-se. Acenou-lhe e deu-lhe os bôs-diês, não se demorando para evitar as más línguas. A Palmira correspondeu com igual desejo de bôs diês. A mãe da Palmira ouvira os bôs diês de um e de outro e veio à janela. O Miguel corou e ia retirar-se. Porém, Crece chamou-o e perguntou-lhe se estava bem, juntamente com a famíliê, a que o Miguel respondeu afirmativamente, agradecendo o interesse pelos seus. Pediu licença e retirou-se.
– Sariam p’cisês mai provas de que Crece sabiê do sê namorico c’o a filhê?
As contas c’o Bumbana foram acertadas numa relva ao Robleiro, onde este capava grilos. O Miguel, que regressava da regada c’o burro, parou a ver o Bumbana e este convidou-o a capar um grilo, o que o Miguel fez. Desde aí esqueceram os ódios e ficaram amigos.
Aos dezasseis anos e pouco experimentou trazer um carrego a sério para os Carvalhas. Fora oferecer-se-lhes, tendo-o estes encaminhado p’ó Tó Panto.
– Atão, tu já podes com um carrego a sério? – perguntou-lhe o Panto.
– Creio que sim. – Respondeu-lhe o Miguel.
– Atão, vá! Prepara-te para sairmos depois de amanhê de manhê p’a Valverde. Já sabes o que tens de levar: a saca do carrego, alpragatas boas p’a andar bem, manta, se t’veres frio, borracha com briol e marenda.
O Miguel ficou todo contente. O Tó Panto casara há pouco com a outra sua prima mais nova, a Maria, e via-o com frequência à porta de sua casa. Ele quisera dar-lhe uma oportunidade por esses laços familiares que os uniam. Falou nisso à mãe. O problema era que não tinha manta. Passariê o frio que fosse p’ciso. Aliás, o frio ainda no apartava. E que levariê p’a comer? Lá conseguiram um naco de trigo espanhol e um farrenheiro da última matança. Haveriê de comer longe dos olhares dos colegas que, se o vissem, se haveriam de rir de tão poca comidê. Quem sabe se não lhe ofereceriam um bocado de choricê e um trago de briol à catalona?!
A primeira experiência fora penosa. Alombar com vinte a vinte e cinco quilos fazia grande diferença dos dez ou quinze a que ultimamente estava habituado. A Marvana era muito mais difícil de subir. Gemeu muitas vezes baixinho, sem dar ponto de fraco. Os colegas bem lhe perguntavam:
– Vai tudo bem contigo, Meguel? P’cisês duma ajudinhê?
O Miguel bem precisava, mas tinha de mostrar-se forte para poder ser contratado outras vezes. Por isso respondeu:
– Ná, obrigado. Vai tudo bem.
As sapatilhas de corda por baixo pareciam cravar-se no chão com o seu peso. Mal conseguia levantar os pés. Mas tudo haveria de passar e haveria de chegar ao destino como os outros.
E chegou, sem incidentes, com apenas mais uns quilómetros nas pernas, umas bolhas nos pés e umas dores nas costas. Teria de descansar dois dias até se meter de novo a caminho de Espanha.
Quando recebeu os vinte escudos fez semblante de os beijar. Quanto suor e lágrimas lhe haviam custado a ganhar! Como poderia ele gastar o seu suor em futilidades?! Nunca. Daria à mãe uma parte para o sustento da casa, como home que era, e outra parte iria para dentro do jarro onde outrora guardara as fitas do Entrudo. Era o seu mealheiro. Havia de comprar uma carteira para substituir o jarro.
Foi uma e outra vez a Valverde, ora vindo pela Quinta do Major, ora pelo Alcambar, ora pela Ginestosa. Muitas vezes não vinham para Quadrazais. Iam directos à Covilhã, passando ao lado de Malcata, ou iam para a Cerdeira, passando, então, pela Ginestosa e Lageosa, afastando-se sempre das proximidades dos postos da Guarda-Fiscal, embrenhados em malhadas e gestais, por carreiros que alguns bem conheciam. Ora iam em filê, em grupos de três separados por uns cinco metros, ora iam lado a lado, numa distância de cinco metros, em grupos de seis, separados dos outros grupos uns vinte a trinta metros. Se carabineiros ó fachos saltavam ó primeiro dos três da frente, os otros tinham oportunidade de tentar escapar. Bastava um agazeio para todos os que vinham atrás fugirem. Se atacavam pelos seis que seguiam lado a lado, só não teriam oportunidade de escapar na sua maioria, se atacassem pelo meio dos seis e fossem uns três guardas. Enfim, tácticas ensaiadas muitas vezes, com resultados provados. O melhor era no serem atacados. Nas primeirês vezes o Miguel teve medo de perder-se, pois não conseguiê ver os colegas, encobertos pelo mato, e nem sempre viê os carreiros. Picadelas de silvas, arranhões do mato, um ou outro rasgão nas calças, tudo fazia parte do ofício. Lanternas? Nem pensar! Era dar sinal aos fachos. De noite todos os gatos são pardos! Por isso, preferiê andar de diê ó à noitinhê, com luê.
Caminhadas enormes! Bem poderia mais tarde correr em estádios, que melhor treino de pernas que este não havia. De noite, estavam sujeitos a cair nalgum poço, como acontecera ao Maneta. Felizmente, nunca chegou a ser apanhado por carabineiros ou fachos. Mas, umê ó otra vez se vira cara a cara com eles e teve de dar corda às alpragatas, com um ó otro chambote ao escorregar nas chinês ó ao empancar nalgum rebolo.
Assistira à prisão de um ó otro colega, para ser largado mais tarde, após lhe tirarem o carrego. Viu um ó otro receber maus tratos dos Fuscos. Teve de se esconder algumas vezes até que Fuscos ou carabineiros deixassem o lugar. Ai dele, se eles tivessem cães que o farejassem!
Ó pernas, p’a que vos quero! Conseguira sempre escapar-lhes. Ainda ovira um ó otro tiro assobiar-lhe junto ós ovidos. Felizmente, não o apanharam. Agachava-se sempre que ovia o estrondo do tiro. Tivera que rastejar muitas vezes por entre gestas e otro mato. E nem bangala usava, como os mais crescidos. Para se defender, só as pernas.
Miguel dava tempo ó tempo. C’o dinheiro que já tinhê e c’o mai qu’haviê de vir, haviê de cumprar uma manta ó Campaínhês e haviê d’arranjar uma bangala cum’ós mais. Também haviê de cumprar uma borracha e levá-la cheia de briol p’a Espanha ó enchê-la lá, que os espanhóis tinham bô pinguê.
Sariê um cuntrabandistê perfeito.
Notas:
– Alombar – transportar no lombo.
– Briol – vinho.
– Capar – tirar grilos dum buraco, picando-os com uma palhinha.
– Chambote – queda.
– Crece – Lucrécia.
– Fagulha – faúlha.
– Galrar – conversar (Gíria).
– Mede – meda.
– Ná, No – não.
– Ó – ao, ou.
(Continua.)
Leave a Reply