Dois temas bem antigos: um mais que o outro. Primeiro: a distribuição de correio na minha aldeia; segundo: o cultivo, tratamento e utilização do linho. Como já referi há meia dúzia de anos, estes assuntos interessam só a título de curiosidades históricas. Mas interessam, claro. Sobretudo a quem gosta da terra onde nasceu.
Comecemos pelo correio. Desde que me lembro, com os meus cinco ou sete anos, que vejo alguém a distribuir correio pela terra. Mas a primeira dessas imagens é de uma mulher meio engonçada – mas que percorria diariamente cada rua se fosse preciso: Maria da Graça de seu nome. Ela foi a carteira que distribuiu o correio aos meus pais e a todos os habitantes do Casteleiro durante dezenas de anos. Num tempo em que as mulheres não tinham profissão, excepto as professoras primárias, é um caso digno de registo e de estudo.
O trabalho no campo era muito pesado. Na sua maioria, as pessoas do Casteleiro ainda viviam do que cultivavam.
Na aldeia, naqueles dias calmos e rurais de 1955-60, as manhãs andavam lentamente, as tardes também e as noites morriam à nascença.
Os gritos no silêncio da aldeia
No meio do geral silêncio daquele final de manhã, um grito de alarme troou na Praça, junto do chafariz:
– Ó menina Emília!
Poderia parecer a quem não soubesse do que se tratava que era um grito lancinante, de aflição. Mas não. Todos sabiam do que se tratava. Ninguém se assustou. Ninguém se preocupou. Nem a própria destinatária do trovão oral.
Não houve logo resposta e a cena repetiu-se, a voz mais aguda ainda:
– Ó menina Emília!
Uma carta. Apenas isso. E chamava lá de longe por medo da cadela que guardava a casa da destinatária daquela carta.
Apenas uma carta. Mas isso (uma carta) era uma prenda dos Correios para cada família – uma prenda muito importante. Estou a falar de um tempo sem telemóvel, sem (quase sem) telefone na aldeia, sem outros meios de comunicação com a família que não fosse o postal ou a carta.
Portanto, um essencial meio de comunicação. Tão indispensável, que até os gritos da carteira eram bem-vindos.
A t’ Mari’ da Graça
E volto à autora dos gritos. Chamava-se Maria da Graça. Devia ter já na época em que começo a ter a noção das coisas aí uns longos e mal tratados 60 e tal anos. Não falo de maus tratos que alguém lhe infligisse: falo dos maus tratos da vida dura e sem protecções nem alívios que é a característica do tempo.
Maria da Graça. A ti’ Maria da Graça. Distribuiu milhares de cartas.
Calcorreou cada viela, cada rua, cada caminho da aldeia em cada dia de cada ano durante muitos e muitos anos.
Era uma pessoa não muito apreciada de modo geral, até talvez um pouco menosprezada. Os miúdos e não só atreviam-se a esconder-se atrás de uma parede e chamar por ela de modo acintoso.
Cobardias de criança contra uma idosa quase cega. Recebiam dela a resposta adequada em vernáculo forte.
Mas a sua função, a de trazer a toda a aldeia as cartas dos filhos, dos amigos, dos sobrinhos… isso era indispensável.
Não me perguntem se ela ganhava ou se ganhava muito ou pouco. Não faço ideia. Talvez ninguém nunca lho tenha perguntado.
Os gritos dela eram famosos. Cá de longe, nalguns casos para não se aproximar do cão, noutros apenas para anunciar o correio, como se fosse uma festa… ela gritava para depois ter o prazer de ver as pessoas aproximar-se dela a receber as cartas e as novas de que ela era a portadora.
Estava a merecer esta homenagem recordatória a velha «t’ Mari’ da Graça».
Porque acho que ela foi uma rara precursora das carteiras dos dias de hoje (não serão muitas, mas penso que já haverá alguns milhares no País).
O linho e a estopa
O linho era um cultivo obrigatório para muitas famílias. Há que dizer que no Casteleiro, no séc. XIX, havia uma tinturaria para dar cor aos tecidos. Era, claro, no Tinte, a caminho de Cantargalo.
Havia pois alguma tradição de cultivar este tecido e tratar outros…
Por exemplo: a peça da foto. De lá saíram dois restinhos de linho, a planta de que tudo isso se faz: duas coisinhas minúsculas. Acreditem que fiquei extasiado quando me foi dito:
– Olha, aqui tens uma palhinha de linho. Tem mais de cem anos.
Eram duas palhinhas minúsculas. Uma delas terá meio centímetro de comprimento, a outra, uns dois milímetros. De espessura, terão meio milímetro, se tanto. São castanhas claras, quase brancas. É linho do bom, real, antiquíssimo. Portanto…
Nada que valha nada neste mundo consumista… Mas elas podem valer no mundo das ideias.
Só de pensar quantas mãos de pessoas do Casteleiro já as tocaram neste século e tal…
Bom. Tenho falado de linho, linho, linho – para simplificar. Mas não é assim que se chama no Casteleiro a este exacto material: não é linho: é estopa, ou seja, linho menos trabalhado, mais grosseiro.
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«A Minha Aldeia», crónica de José Carlos Mendes
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Janeiro de 2011)
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