Eram designados de «ratinhos» os beirões que, em grupo, trabalhavam no latifúndio alentejano, colmatando a crónica falta de mão-de-obra nas grandes e colectivas tarefas agrícolas daquela província do sul de Portugal. Vários autores escreveram sobre esta gente pobre que era mal-amada pelos povos, igualmente pobres, dos lugares onde aportavam.
Desses trabalhadores agrícolas que caminhavam e trabalhavam em rancho, falou-nos Luís Coelho Albernaz, no seu livro «Os Ratinhos», um romance social de raiz regional, cuja acção tem por pano de fundo os movimentos migratórios dos que sazonalmente debandavam o sul à cata de sustento, sujeitando-se a uma vida dura e cruel.
Esses desaventurados da Beira, gente simples e pobre, desciam ao Alentejo para lá trabalharem durante meses a fio, envolvendo-se nas tarefas agrícolas mais duras, mormente ceifas, malhas, vindimas e podas. Seguiam em grupo, orientados por um capataz que tinha a responsabilidade de falar com os latifundiários e os seus feitores, de manter a coesão do grupo e de a todos trazer de volta no final da campanha.
Trabalhavam arduamente e viviam em condições miseráveis, dormindo no chão ou em tarimbas, sobre palha impregnada de percevejos. Arranchavam onde calhava, comendo papas e migas, servindo-se todos da mesma gamela:
«Naquele dia cozeram feijões com saramagos e carne de porco, mais gorda que magra. Pronto o cozinhado, foi este distribuído por pequenos recipientes onde os Ratinhos de casqueiro numa mão e colher na outra, se iam servir.»
Os alentejanos não gostavam destes beirões, pobretanas como eles, que procuravam o sul e aceitavam trabalhar a qualquer preço, pondo em causa as lutas que os trabalhadores locais faziam para verem aumentado o valor da jorna. Por isso lhes chamaram «ratinhos», por comparação com os roedores que comiam onde achavam comida.
Mas para se perceber este ódio entre alentejanos e beirões, é preciso ler José Saramago, no livro «Levantado do Chão» – uma autêntica epopeia do Alentejo, terra desgraçada, onde a exploração e a humilhação do povo miserável garantia abundância ao latifundiário:
«Estão agora dois grupos de trabalhadores frente a frente, dez passos cortados os separam. Dizem os do norte, Há leis, fomos contratados e queremos trabalhar. Dizem os do sul, Sujeitam-se a ganhar menos, vêm aqui fazer-nos mal, voltem para a vossa terra, ratinhos. Dizem os do norte, Na nossa terra não há trabalho, tudo é pedra e tojo, somos beirões, não nos chamem ratinhos, que é ofensa. Dizem os do sul, São ratinhos, são ratos, vêm aqui para roer o nosso pão. Dizem os do norte, Temos fome. Dizem os do sul, Também nós, mas não queremos sujeitar-nos a esta miséria, se aceitarem trabalhar por esse jornal, ficamos nós sem ganhar. Dizem os do norte, A culpa é vossa, não sejais soberbos, aceitai o que o patrão oferece, antes menos que coisa nenhuma, e haverá trabalho para todos, porque sois poucos e nós vimos ajudar. Dizem os do sul, É um engano, querem enganar-nos a todos, nós não temos que consentir neste salário, juntem-se a nós e o patrão terá de pagar melhor jorna a toda a gente. Dizem os do norte, Cada um sabe de si e Deus de todos, não queremos alianças, viemos de longe, não podemos ficar aqui em guerras com o patrão, queremos trabalhar. Dizem os do sul, Aqui não trabalham. Dizem os do norte, Trabalhamos. Dizem os do sul, Esta terra é nossa. Dizem os do norte, mas não a querem fabricar. Dizem os do sul, Por este salário não. Dizem os do norte, Nós aceitamos o salário. Diz o feitor, Pronto temos conversado, arredem lá para trás e deixem os homens pegar ao trabalho. Dizem os do sul, Não enregam. Diz o feitor, Enregam que mando eu, ou chamo a guarda. Dizem os do sul, Antes que a guarda chegue, correrá aqui sangue. Diz o feitor, Se a guarda vier, ainda mais sangue correrá, depois não se queixem. Dizem os do sul, Irmãos, dêem ouvidos ao que dizemos, juntem-se a nós, por alma de quem lá têm. Dizem os do norte, Já foi dito, queremos trabalhar.»
Outro autor que também falou nos ratinhos beirões foi Urbano Tavares Rodrigues, em «O Monte das Rosas». Descreve quem era essa gente, que carácter tinham, que vestiam, como falavam e como sobreviviam nas suas terras agrestes e no sufocante Alentejo:
«Foi com a Adelaide, de carrinha, ver os “ratinhos” na ceifa. Parecia um dia de Agosto. O sol ofegava, em chamas claras, no suão escaldante sobre as piorneiras emaranhadas, de onde se levantavam os tordos e as cotovias, junto à carreteira, e os trigais ondulantes ardiam na vesâmia da manhã rubriloura, opressa de calor. Alguns trinta e muitos graus à sombra, perto de quarenta… Uma das raparigas da Beira, já lhe dera um “badagaio”, por causa daquela calma. “Não estão avezados” – explicava o Queixada, enquanto lhe ia borrifando a face com água, suspendendo-se amiúde para aventar bolegadas a um perro vagabundo, que teimava em acercar-se da chanfana que um dos “ratinhos”, muito vermelho e desabotoado, estava preparando ao lume para o almoço. Eram quase todos baixos, malfeitos, de perna curta, troncudos, grandes cabeças de lusitanos, como estátuas românicas, mas o sorriso aberto, o olhar vivo malicioso, a palavra fácil. “Salve-as Deus”, “Deus vos ajude” – cumprimentavam os mais velhos. Nem aquelas saudações faltavam. Teresa conhecia bem aquele tipo humano, que comia e dormia com o gado nas suas aldeias de pedra e penava sem desfalecimento para amealhar dinheiro, para educar os filhos, para acrescentar as suas leiras. Gente dada, de bom convívio, gente de aço e de borracha, dócil e tenaz, geba mas esperta, sabendo viver com Deus Nosso Senhor e com os seus interesses. Gente forte e humilde da sua terra, apta para todas as fainas. Também ela era da mesma massa. Sentia-se fisicamente canhestra e espessa como eles. O Queixada, no meio dos “ratinhos”, de jaqueta ruça, delgado, torneado, o nariz adunco e nervoso, os lábios finos, o pescoço alto, uma nuca perfeita, sob o lenço esvoaçante que a protegia do sol, parecia um príncipe do deserto, de outra raça, mais fechada, mais bela e mais triste.»
Também José da Silva Picão falou dos ratinhos, no seu «Através dos Campos», livro antigo, editado pela primeira vez em 1903, e dedicado aos usos e costumes agrícolas no concelho de Elvas, na raia alentejana:
«Tanto no concelho de Elvas, como em muitos outros do Alentejo e até de Espanha, as ceifas nas herdades, são geralmente executadas por milhares de homens e rapazes que, de propósito, vêm das Beiras e que o público conhece pelo nome de ratinhos ou ratos. É uma alcunha pouco lisonjeira, mas os alcunhados não a repelem nem se amofinam por isso. Ratinhos foram seus avós e pais, ratos se consideram eles e, outro tanto, sucederá a seus filhos e netos.
O hábito de virem ceifar às terras alentejanas, é tão antigo e inalterável, está tão arreigado e persistente que deverá subsistir por largos anos, como vantajoso que é para lavradores e serviçais. Ai das colheitas do Alentejo, se lhes faltassem os ceifeiros beirões!…
Essas centenas e centenas de braços, cuja totalidade comporia uma grande legião, dividem-se em grandes agrupamentos ou camaradas de cinquenta a cento e tantos indivíduos, de antemão recrutados pelo respectivo manajeiro.
Cada agrupamento tem o seu manajeiro em chefe que delega parte dos poderes nos encarregados dos cortes, em que a mesma camarada se desdobra ao chegar ao Alentejo e se dividir para as diferentes ceifas que se ajustam. Esse encarregado toma o nome de manajeiro do corte e, como tal, governa sobre a gente que lhe distribuem.
Castanheira de Pera, Águeda, Anadia, Oliveira do Bairro, Arganil, Góis, Lousã, Figueiró dos Vinhos, Pedrogão Grande, Sertã, Proença-a-Nova e outras, são as zonas que fornecem maior contingente de ratinhos.
E – nota curiosa – entre esses homens, não se encontram apenas os que se entregam aos labores do campo nas suas naturalidades, mas também muitos de profissões e hábitos diversos – sapateiros, alfaiates, barbeiros, etc. É que, para todos eles, a ceifas do Alentejo proporcionam-lhes melhores lucros do que os ofícios que exercem nos seus rústicos lugarejos.»
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Paulo Leitão Batista
Parabéns pelo excelente trabalho, continue. 🙂
Paulo
Obrigado por esta esplêndida crónica.
A vida das gentes beirãs foi sempre uma vida dura, e ir para o sul trabalhar sazonalmente era um acréscimo, mesmo que pouco, ao fraco pecúlio destas gentes.
Mas os beirões não foram só para o Alentejo. Ainda vivi em Almeirima saga dos “barrões” , mais tarde, das “barroas”, mulheres e homens que, sobretudo da Beira Baixa, vinham em ranchos até ao Ribatejo,para as vindimas.
Existe uma dúvida sobre a origem do termo “barrão”. Uns dizem que tem origem no termo beirão, mas outros falam também de que em parte do Ribatejo, a nora era normalmente puxada por um burro e que quando este adoecia, se ia buscar o homem mais pobre da terra para fazer de burro. A este homem chamavam o barrão, nome que se estendeu aos beirões por serem tão pobres.
Um dia talvez escreva sobre aquilo a que assisti.
Muuuuuuuuuuuuuuuito, muito, muito bem, Paulo.
Apoiado.
Não conhecia esta terceira citação, e adorei juntá-la aos meus conhecimentos.
Da minha aldeia iam «para longes terras» muitas pessoas – quer para a ceifa quer para a azeitona…
Obrigado por um momento muito bom para mim – poder recordar o movimento sos ratinhos e ao mesmo tempo lembrar Saramago e Urbano.
Uma sugestão, Paulo: faça o mesmo com outros temas – isso amplia o interesse do nosso «jornal», o «Capeia Arraiana».
Amigo Leitão :
É um prazer imenso ver-te regressar.
António Emídio