O meu plano é trazer aqui um resumo dos 38 meses e 11 dias da minha tropa: desde 21 de Julho de 1971 (entrada no Curso de Oficiais Milicianos da Escola Prática de Infantaria de Mafra) até 2 de Outubro de 1974 (aterragem no aeroporto militar de Lisboa, vindos de Luanda). Trarei apenas episódios marcantes, nunca esquecidos, que dormem acordados nos recantos da minha memória.
Recordo para quem ainda não tenha acompanhado estas crónicas que que um dia dou comigo de farda verde em Mafra. Primeiro choque: deixo de ser dono de mim. Frente-marche-esquerdo-direito (e mais tarde, em Santarém, apenas um dia horrível, ou em Lamego – três meses do fim do mundo da vida… aí é que a coisa aqueceu…).
Foi em 1971, era o mês de Julho: Mafra, Lamego, Amadora, Luanda, Cabinda (Buco Zau, Bata Sano… 26 meses no meio do Maiombe: nunca mais vou poder esquecer: nunca!).
Antes de mais, uma nota sobre os quase 47 anos que passaram desde o Bata Sano, Buco Zau, etc. Não há dia nenhum em que não me passem pela cabeça imagens e situações, pessoas e problemas com os quais vivemos ali meses a fio.
Subterrâneos e escadarias
Nesta narrativa e na crónica de hoje, ainda estou em Lamego, cidade que fiquei a conhecer rua a rua, bairro a bairro, café a café – apesar de serem muitos os tempos livres para comer e beber e tomar café com os companheiros de aventuras…
Fiquei a conhecer a cidade e os subterrâneos também… já que algumas operações mais enlameadas metiam riachos, águas correntes e até esgotos… Assim como fiquei a conhecer a célebre escadaria do Santuário, pois alguns treinos incluíam contar os degraus um a um… rebolando por eles abaixo.
Dois minutos e meio?
Aquelas vozes de comando do tipo «Sééééééééééét’UP», com um grito medonho na última sílaba ficam sempre nos ouvidos. Exemplos:
– Apresentáááááááááá… ÁR!
Não é armas: é apenas «ÁR!», com este «ÁR!» em tom repentino e bem gritado.
– Descaaaan… ÁR!
O «s» não é para ali chamado! Etc. Muito gente sabe como aquilo era…
Mas em Lamego havia coisas bem mais marcantes e que ficam para toda a vida. Por exemplo: às 5 e tal da manhã entra pela caserna dentro um instrutor que berra assim:
– Levantar! Acordar e tê dois minutos e meio para estar na parada bem fardados e de camuflado. Dois minutos e meio! Bem lavados e de barba bem feita. Tá no ir! Dois minutos e meio.
Da primeira vez que isto me aconteceu pensei:
– Está tudo maluco???? Como é que eu faço isso tudo em dois minutos e meio?????
Mas faz-se e a brincar. É uma questão de treino e de método. Para escrever isto com rigor, ainda esta manhã o fiz e nem cheguei aos dois minutos e meio!!!!!!
Lamego – o material de treino
As armas que me colocaram à frente para os treinos foram:
– a famosa e sempre pronta G3, espingarda de combate super bem concebida e sempre operacional para qualquer situação, por mais complexa;
– a pistola-metralhadora, que não servia para nada a não ser para os oficiais se exibirem, mas que julgo que nenhum nunca terá querido levar para a mata em situação de guerra real;
– as duas granadas-tipo da altura: a defensiva e a ofensiva (a primeira, com estilhaços a sério).
Havia depois a mochila com todos os apetrechos e as rações de combate lá dentro.
As viaturas dos Rangers e os meios aéreos da FAP que vinham ali para nós treinarmos algumas situações mais complicadas e como sair delas. Eram os meios de apoio:
– viaturas: jeep, Unimog, Berliet;
– meios aéreos: helicópteros Allouete 3 e Puma (o bom gigante, grande e sempre operacional).
Deixem-me apenas recontar como é que o nosso cérebro fica marcado para sempre. No caso, eis o efeito diabólico que faz ainda hoje o ruído de um helicóptero que eu oiça a aproximar-se. Leia e oiça…
Um animal horroroso chamado helicóptero
Só quem fez Lamego (Operações Especiais / Rangers), como já disse várias vezes, só quem por lá esteve em treinos é que pode avaliar o horror que sinto pelos helicópteros da tropa. Sim, bem sei que o heli era a safa para um ferido. Mas este barulho daqueles motores ficou-me gravado no mais fundo do cérebro até que morra. Meus amigos, não estou a brincar. Às vezes estou em casa ou na praia, nesta zona de Sesimbra onde passo os fins-de-semana e… muito antes de mais alguém os ouvir, já eu estou a dizer: – Vem aí um Puma! – Então aquele motor do Puma é horrível. Mas o do Alouette 3 também tem que chegue.
Interessante é que se forem helicópteros civis não me dizem nada: passam em paz… Nem sei se hoje a Força Aérea e a Marinha já têm também outras marcas – e essas não me dirão nada. Mas os motores e o barulho especialíssimo das pás destas duas marcas, mas sobretudo, repito, as do Puma – isso nunca mais me passa… – É um trauma, Miguel? – O Dr. Nuno Silva Miguel é um grande psiquiatra do nosso País, especialmente na área da toxicodependência, sabiam?
Tudo bem: será um trauma. E quem se lixa mais é a família e amigos que têm de gramar isto: – Eh pá, vem aí um Puma! – (E vem: dois minutos depois, eles também ouvem…). Vem aí um Puma.. Como se eu hoje ainda tivesse alguma coisa a ver com isso!!! Que diabo!
Quando é que vou deixar os helis passarem aqui por cima em direcção ao (ou vindos do) Montijo, sem que eles se metam comigo e sem eu me meter na vida deles?
– Mas porquê este horror aos helis? – Por uma razão muito simples: por causa do treino desumano e perigoso que neles sofri em Lamego.
(Continua.)
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«1971-74 – Os Dias da Tropa», por José Carlos Mendes
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