O meu plano é trazer aqui um resumo dos 38 meses e 11 dias da minha tropa: desde 21 de Julho de 1971 (entrada no Curso de Oficiais Milicianos da Escola Prática de Infantaria de Mafra) até 2 de Outubro de 1974 (aterragem no aeroporto militar de Lisboa, vindos de Luanda). Trarei apenas episódios marcantes, nunca esquecidos, que dormem acordados nos recantos da minha memória.
O que foi Lamego para mim?
Uma enorme parada, um enorme ginásio de tortura física e psicológica, um campo de tareias permanentes. Quem tinha ido como voluntário, vá lá. Mas quem como eu foi por castigo… Santa Maria!
Mas aquilo afectou-nos a todos
Prometi que não entrava em pormenores para não ser mórbido nem dramático. Mas tenho de ser realista. Se quando comecei a escrever achava exagero contar pormenores, hoje penso que não os contar pode ser bem pior. Assim, encontrei um meio termo. Sorte a minha.
Encontrei um blogue de uma vítima da mesmíssima instrução e exactamente no mesmo período: segundo semestre de 1971.
Este companheiro de armas da altura esteve no CIOE exactamente quando eu – mas ele então já era instrutor. Penso que fui seu instruendo. Ou seja: ele está a falar de mim!!
Pequeno retrato das Operações Especiais
Deixo aqui um resumo pequenino. Mas quem queira ter acesso às suas descrições pormenorizadas (por mero «voyeurismo» masoquista…) pode ler toda a prosa do autor… (Aqui.)
Leia então aqui meia dúzia de palavras sobre aquilo a que ele chama poeticamente «as principais provas». Eu diria: são algumas operações especiais, de facto. Ou melhor: as principais tareias físicas e psicológicas. Mas para quem tiver curiosidade para saber como era mesmo… o melhor é abrir o link e ir ao blog do autor que refiro…
Operações (pequeno resumo)
– Fantasma:
«Esta é uma prova fácil, mas requer muito controlo emocional, durante todo o percurso, de cerca de oito quilómetros. A noite não tem luar, lá fora a escuridão é quase total, e até as luzes da cidade de Lamego morrem à míngua. Todos os instruendos estão sentados no refeitório, a aguardar serem chamados. De cinco em cinco minutos sai um militar, somos cronometrados como se fossemos fazer uma prova de atletismo (…).»
– O Calvário:
«É uma prova diurna. Há alguns tipos de equipamentos que têm de ser transportados à mão, entre dois locais distanciados de oito a dez quilómetros. O equipamento, a sortear pelos instruendos, tem um peso unitário da ordem dos 20 kg e compreende bolas grandes (talvez cheias com terra), rolos de arame farpado e cruzes latinas em madeira, com cerca de três metros. A mim calha-me um rolo de arame farpado (…).»
– Prisioneiros de guerra:
«É uma prova individual de tortura psicológica. A noite está a começar, estamos todos preparados para sair do destacamento. Os olhos estão vendados e as mãos atadas atrás das costas. Brevemente as Berliets carregadas de soldados arrancam para uma serra desconhecida onde nos vão largar. Vão dar voltas e mais voltas para baralhar a nossa orientação. Lá vamos aos solavancos, seguramente por estradões de terra batida (…).»
– A dureza 11:
«Estamos quase no final da nossa preparação; alguém alerta para o facto de na identificação da prova figurar o numero da semana do curso, … mas logo de seguida recordo-me das lições de mineralogia e começo a ficar preocupado, porque “dureza 11” significa que passamos ou vamos passar além do máximo da Escala (de dureza) de Mohs. De facto, são quatro dias dramáticos. É uma prova de resistência e de dureza; de resistência à fome, à sede, ao sono e ao frio; de dureza pelos exercícios que nela decorrem. É um tempo sem lógica para nós, onde tudo nos espera e tudo pode acontecer (…).»
– As 24 horas de Lamego:
No dia em que tinha terminado a Dureza 11, chegados ao destacamento deu para tomar um magnifico banho e posteriormente saciar o apetite com um jantar com todos. Quando esperávamos poder sair e avançar para um merecido repouso, (…) (…) tudo em marcha rápida para lençóis… que quase não chegam a aquecer porque, menos de uma hora decorrida, o sono é interrompido ao som das granadas. E já todos na parada, fomos informados de que se vai ter lugar uma nova prova: as vinte e quatro horas de Lamego (…)».
Só uma pequena amostra
Finalmente, permita que transcreva umas frases desse tal companheiro, as quais deixam bem clara a situação a que os instruendos ali estão amarrados:
«O instruendo não tem hora certa para descansar; é forçado a levantar-se a qualquer hora da noite: às vinte e duas, à meia-noite, às duas, às quatro ou às seis da manhã, tem de estar sempre disponível.Não há clarim para tocar a alvorada; o som metálico é sempre, mas sempre, substituído pelo estrondo de granadas ofensivas que rebentam à frente das casernas, passados dois minutos tem de estar na parada, formado com o seu grupo de combate, geralmente em camisola branca, calça de camuflado e bota a condizer; de seguida são feitas suspensões nas barras fixas, que estão mais à frente na parada estrategicamente montadas (…)».
Etc., etc.
Tenho mesmo de parar com isto, que já não aguento mais. Desculpem, mas isto é muito sério, psicologicamente, mesmo tantos anos depois.
(Continua.)
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