O meu plano é trazer aqui um resumo dos 38 meses e 11 dias da minha tropa: desde 21 de Julho de 1971 (entrada no Curso de Oficiais Milicianos da Escola Prática de Infantaria de Mafra) até 2 de Outubro de 1974 (aterragem no aeroporto militar de Lisboa, vindos de Luanda). Trarei apenas episódios marcantes, nunca esquecidos, que dormem acordados nos recantos da minha memória.
Cerca de 24 meses no meio da Floresta Virgem do Maiombe já seriam marca suficiente. Com arma na mão, mais ainda. No meio de uma guerra colonial – pior ainda.
No meio desse período marcante, falarei das etapas todas: ida para Lamego (Curso de Instrução de Operações Especiais) – em Setembro de 1971; formação de Batalhão no então RI 1, na Amadora – entre Janeiro e Agosto de 1972; avião militar a 2 de Agosto de 1972: viagem de 9 horas, entre Lisboa e Luanda; viagem de Luanda para Cabinda em navio da Marinha de Guerra; viagem Cabinda-Buco Zau e estada na Sede do Batalhão no Bata Sano durante dois anos – lá passei o próprio dia 25 de Abril de 1974, por exemplo.
Trágica crónica esta. Trágicos dias aqueles. Episódios marcantes que nunca se escondem, dentro deste meu cérebro nem que eu viva mil anos…
…Pelo caminho, milhares de episódios dignos de registo pois devem ter sido iguais aos vividos por milhares e milhares de jovens da época. Vou reportar alguns dos mais marcantes, na minha memória violenta daqueles dias…
Fugir ou não fugir, eis a questão…
Para quem não passou por estas cenas (agora diz-se assim, parece), esta coisa da tropa de há 47 anos não diz nada. Mas para quem passou por «elas», como foi o meu caso, posso garantir que «cem anos que eu viva, não hei-de esquecer», como cantava naquele mesmo tempo o então famoso intérprete de fados e canções Tristão da Silva.
Hoje a malta nova dos vinte e tal anos nem imagina o que era aquilo de ter de um dia ir para a tropa e quase de cetrteza para a guerra, sem ter nenhuma certeza de nada: nem da vida que tinha de se fazer, nem da morte que podia espreitar por lá no meio das matas… e tantos que por lá ficaram: Honra Lhes Seja Feita.
A alternativa era fugir para a França ou para a Suécia. Alguns o fizeram. Respeito e sempre admirei essa opção de tantos jovens.
Eu nunca planeei fugir. Sempre tive consciência do que arriscava, mas tinha muito mais medo de ter de ir embora e sabia lá eu se voltava e quando… De modo que entrei na roleta.
Corria o mês de Julho do ano de 1971. Dava aulas num externato em Lisboa, mesmo em frente da Igreja de Benfica, e ao mesmo tempo estudava em Direito. Até que um dia… Tropa chama!
Etapa 1 – Mafra
Na véspera de fazer oral de Economia Política, do segundo ano da Faculdade de Direito de Lisboa, em vez de continuar a estudar e a fazer a minha carreira académica, não: espetaram comigo na Tapada de Mafra.
Foi o diabo. Tudo diferente.
O que mais estranhei foi aquele cerimonial louco da tropa, desde manhã até à noite:
– Meu sargento, assim; meu furriel, assado; meu aspirante tal e coisa,; meu alferes, veja lá, por favor…
E eles:
– O nosso Cadete assim, o nosso Cadete assado…
Mas, pior do que tudo isso, é a perda total de identidade: cá fora num dia eu era para toda a gente o Zé Carlos… No dia seguinte, ali, passei a ser o nosso Cadete Mendes! Mendes…
Nem sequer acudia pelo nome, pois nunca ninguém me chamara Mendes, assim, sem mais: MENDES.
Os sargentos, naqueles primeiros dias, ao cumprirem a sua tarefa, estranhavam muito, pois chamavam:
– Nosso Cadete Mendes!
E ninguém reagia logo. Nos primeiros cinco segundos fazia-se silêncio. Pois se não era esse o meu nome! Que diabo… E não era só comigo que tal mudança acontecia e marcava.
A instrução na Tapada
Todo o santo dia de farda vestida. Farda n.º 3, farda de trabalho – era assim que se falava.
Todo o dia na Tapada a subir «montes» e a descer «vales», a subir troncos de árvores e a treinar nos aparelhos militares de ginástica forçada. E sempre com alguém a azucrinar-nos os ouvidos.
A instrução na Parada
Toda a gente sabe que o Curso de Oficiais Milicianos era tirado ali nas instalações da Escola Prática de Infantaria, instalações essas que dantes pertenciam ao Convento de Mafra. Aliás, não sei se conhecem: o Convento de Mafra e o seu órgão eram famosíssimos!
O aquartelamento fica atrás e a Parada é enorme. O campo de treinos é a Tapada: vários hectares para a tropa se estender bem estendida.
Aqueles primeiros dias foram um caos dentro das nossas cabeças: formaturas, chamadas, todos a berrar por nós e a darem-nos ordens como se nos quisessem bater… Percebemos depois, ao quinto ou sexto dia, que aquilo era tudo um jogo de teatros vários: eles, os graduados, tinham de fazer de conta que mandavam em nós e nós o contrário: éramos os paus-mandados de toda a gente.
É a mais forte sensação que me ficou para sempre.
E com mais esta reserva que nunca me sai da cabeça: só podia ser teatro, pois dali a meio ano eu poderia, já como aspirante miliciano, apanhar qualquer deles num quartel qualquer e… vai de malhar no desgraçado… se eu fosse mal-formado – e eles bem sabiam que era assim. Só eu é que sabia que nunca seria capaz de me vingar naquele quadro de desvantagem para todos. Mas ali, todos eles, muito empertigados, a darem-nos ordens como se fôssemos… sei lá… cãezinhos amestrados ou pior ainda…
A comida
A primeira grande surpresa em Mafra foi a comida. Não era tão má como todos diziam no Casteleiro quando eu era mais novo – que na tropa se comia mal. Mas nem por isso. Nada que se comesse com prazer, é verdade. Mas esperava muito pior, pois a fama que a tropa tinha era muito má nessa matéria também.
Mas não: comia-se aquela sopa de águas várias e aquelas caldeiradas mal paridas, e o organismo não obrigava a vomitar ou a rejeitar a refeição. Também… verdade se diga, nunca fui muito esquisito.
O pequeno almoço era bem cedo, logo depois da primeira formatura, ao acordar… ainda com os olhos a fecharem-se de sono.
Pelo meio-dia, almoço. Às quatro e meia (era Outono e já estava quase noite), um pãozinho para o lanche. Nada mau. Ainda hoje é sempre o meu lanche.
À noite, lá pelas sete, o jantar e… uma rápida saída, ou caserna de imediato, para dormir o mais possível, pois às seis horas a corneta não perdoava.
A corneta
Hoje termino com esta: a permanente companhia na tropa – o som daquela corneta maldita mais a imagem do desgraçado do cabo corneteiro que não fazia mais nada durante todo o dia do que andar a lixar a cabeça da malta toda: dava ordens tocadas em vez de faladas…
Vejam como é ainda hoje, nas cerimónias militares ou celebrações nacionais com tropa na moldura: a malta na formatura e as ordens são dadas ou só de corneta apontada ou vebalmente e sublinhadas pelo som da maldita da corneta da tropa.
Ainda hoje cá anda dentro. E quando a oiço na televisão, ainda penso na Parada de Mafra, pois claro!
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>> Na próxima semana: Lamego, os primeiros dias! Coisas incríveis!
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«1971-74 – Os Dias da Tropa», por José Carlos Mendes
Lidinha, isto ainda não é nada… Quando leres sobre o treino em Lamego ou sobre as operações em Cabinda, no Maiombe, aí é que vais gostar.
É de arrepiar só estar a pensar em escrever…
Abraço.
Ó nosso Cadete Mendes, li hoje, após chegar à casota, e apreciei.
Pois é, JFernandes!
É a catarse pura e dura.
O que vou escrever às vezes soa a um bocado duro, mas só assim é que vale a pena.
É que não há dia nenhum desde aquela altura em que por isto ou por aquilo ou mesmo por nada… não me venham imagens vivas daqueles dias.
Bolas, que é demais…
Quando é que isto acabará??????
Um abraço, meu caro. A si e a todos os que por lá andámos feitos paus mandados.
JCMendes:
Apenas para referir que estes dias da tropa são ou foram os dias da tropa de milhares de nós que, fosse em Mafra ou nas Caldas da Rainha, acabámos por participar a contra gosto numa guerra que felizmente acabou.
As descrições, mais coisa menos coisa foram iguais para todos.
Mas uma coisa sabemos:
Bem ou mal são uma marca na nossa vida.
Mesmo hoje continuamos a falar nisso apesar de terem passado mais de 4 décadas.
Mesmo hoje faz-nos bem falar ou escrever sobre isto.
Um abraço