A minha intenção é sempre a mesma. Avivar a memória da cultura de Quadrazais para que não se perca, sobretudo entre os jovens que não nasceram ou não cresceram em Quadrazais, tendo ouvido apenas dos pais e avós algumas histórias e cenas da vida quotidiana da terra onde haviam nascido, tão longe do local onde agora se encontram. Na «Novela na Raia» vou utilizar personagens reais da aldeia, tentarei descrever quadros da aldeia e narrar os factos do dia-a-dia, embora não obrigatoriamente protagonizados por estas personagens. (Episódio 11).
PRIMEIRA PARTE – FREQUENTANDO A ESCOLA
Episódio 11
No dia seguinte, bem de manhãzinha, ouviu alguém a forçar a porta. Ainda estava na cama e foi a mãe quem foi à porta. Eram militares e fachos a entrar-lhes porta a dentro. Procuraram contrabando por baixo da cama e na cozinha, mas não encontraram nada. Em casa do vizinho Tó Braga entraram mal a mulher abriu a porta para ir à loije buscar lenha p’ó lume. Viram um monte de fazenda na sala e uma praça gritou para o alferes:
– Meu alferes, temos aqui caça grossa.
Tiveram azar, que a fazenda era toda portuguesa. Tiveram azar ainda, em geral, porque quase não encontraram nada, que os quadrazenhos, dado o alvitre, haviam escondido as pistolas nos cântaros da água e o contrabando debaixo da neve nalgum quintal. Nem foi preciso recorrer ao truque usado muitos anos antes, noutro cerco a Quadrazais, em que enrolaram as sedas e colchas à volta do corpo das santas que eram revestidas por roupas porque eram feitas de madeira e tinham espaço livre, como eram Nossa Senhora das Dores, a Senhora dos Remédios e outra santa ainda.
À Praça havia metralhadoras montadas. Para lá do cemitério havia carros e carros de fachos e militares que transmitiam mensagens por rádio. Tanto aparato para quase nada!
Quantas vezes não teriam já o Réri e o Pepe ajustado contas a caminho da Raia?! Um e outro já haviam curado brechas. Esperas à porta da casa de um e de outro sucediam-se. Pedradas por aquelas ruas, o pão nosso de cada dia. Pareciam as pedradas do Fausto. Traziam mesmo uma navalha no bolso, objecto tão apreciado, que servia para cortar vardiscas e tirar-lhes a casca em caracol, que tingiriam de amoras trigais, assim tão bonitas, com que se passeavam pela aldeia, orgulhosos, ou com que batiam nos cavalos, com uma vara mais comprida.
Começava por ser uma navalhinha de taxas, bonitinha, comprada na feira de São Pedro ou na Feira Nova. Com ela se faziam pífaros dos mamões dos castanheiros. E que pífaros!… Parecia que os capadores andavam à volta do povo. Com ela se faziam as espingardas de sabugueiro, se recortavam as rodas das carretas, se faziam rodas de carrinhos das solas de borracha das alpragatas espanholas e mil e um brinquedos de fazer inveja aos meninos de Lisboa, que tudo compravam feito nos grandes armazéns. Até para os pintoiros, todos recortados, e os rapas se serviam desse tão idolatrado objecto. Até mesmo uma pioninha já se ensaiava, depois do piãozinho da carreta que se fazia balhar em cima da mesa ou no soalho.
Tinha-se mesmo gosto em vê-la cortar o pão e o queijo que, com ela, tinham outro sabor. Toucinho, morcela ou qualquer outro conduto, todos serviam sob a batuta da navalhinha. Era tal a gana de ter uma navalhinha que, quando apanhavam uma joaninha, o desejo que exprimiam ao lançá-la a voar, era:
Joaninha, avoa, avoa,
Minha bonitinha,
Vai para Lisboa
E traz-me uma navalhinha.
Pela idade da escola já se tinha direito a uma navalha de meia-lua. Um que outro apresentava já uma navalha de mola, ambas trazidas de Valverde. Uma corrente prendia-a com o garbo de quem hoje ostenta um relógio nas correntes de ouro.
Sim, senhor, já se cortavam vardiscas mais grossas. Não havia pão duro que resistisse. E todos os dias uma afiadela na pedra ferrenha ou, se necessário, na pedra do ti Tózinho, o sapateiro. Era preciso demonstrar em público que era a melhor lâmina, que cortava de uma só vez uma vardisca da grossura duma aguilhada. E vá de cortar…
– Vê lá se a tua faz o mesmo?
– Pois não, ora dá cá a vardisca. Um desafio.
Eram um mimo os piões e pionas que fabricavam para usar na forca a comer as ocas em vez do piãozinho do comércio perdedor, que era preciso poupar.
E já havia um ou outro que ameaçava usar a navalha para cravar o parceiro. Aconteceu com o Lívio, que matou o amigo Irineu com um corte da veia da perna, quando este estava em cima dele. Mesmo sem pensar em matá-lo, o Irineu lá se foi…
O Miguel vira-os jogar ambos à roda-bota-fora, com raiva, a ver se escavacavam o pião do outro. Na bola, ficavam sempre em campos opostos. Canelada que fervia e a bola, mesmo de trapos, a bater nas fúcias do outro.
Poder dizer que lhe ganhou era um trunfo a seu favor. Para mais, a raiva tinha fúrias de goleador.
Para os trabalhos da escola é que não haviam transferido a contenda. Viam-se, com frequência, os meninos resolverem os problemas nas escaleiras, ao solheiro, em grupos. Eles, porém, não eram muito assíduos a estes convívios.
Mas, um dia, o Miguel havia-os visto juntos de podoa na mão.
Teriam feito as pazes? Iriam à lenha?
Pela tardinha regressava cada um com dois paus de carvalho, aos ombros. Iríamos ter samancos pela certa.
Dito e feito. Daí a pouco, lá vinham eles rua fora a passos largos, montados nos samancos, à parelha. Pareciam uns gigantes em cima deles, com a galha distante mais dum metro do chão.
Nunca o Miguel tinha tido uns tão altos. Havia de ir à malhada do Alcambar cortar uns assim. Teve uns mais baixos, que a mãe metera no lume um dia para fazer o jantar.
Que prazer passar por cima dos lapacheiros e de pedaços de neve que, teimosamente, ainda não derretera! Até tinham uma brocha no fundo para escorregarem menos, sobretudo no códão.
Quantas vezes o Miguel não se foi aquecer na forja do Magildro! E espreitava o dono a bater com um grande martelo sobre o ferro em brasa, até se transformar em ferradura, gancho ou enxada.
Começou a ter medo dos ferreiros desde que viu o Sr. Mateus sangrar a burra do seu vizinho Tó Braga. Era machorra e vá de a sangrar com uma navalha apropriada. Podia estar auguada, uma das razões por que não cobria. Viu dar uma pancada sobre a navalha que colocara junto da veia do pescoço da burra e o sangue escorria pela rua fora. Pensou que a burra iria morrer. Finalmente, espetou-lhe um prego a unir os dois lados da ferida e o sangue estancou.
A burra é que nunca pariu!
Notas:
– Auguada – triste por não a terem deixado comer algo que viu e lhe apeteceu.
– Lapacheiro – lamaçal.
– Ocas – furos.
– Pintoiros – ponteiros.
– Solheiro – soalheiro.
– Fúcias – fuças.
(Continua.)
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«Narrada no Risco», por Franklim Costa Braga
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Maio de 2014)
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