Em Outubro de 1958 fui frequentar a Escola Apostólica de Cristo Rei em Gouveia, uma casa dirigida por Padres Alemães. Quando nas férias do Natal regressei à minha Aldeia, Bismula, no concelho do Sabugal, dei conta que já não estavam algumas pessoas. Naqueles tempos, sabia-se que a dor ou alegria do vizinho era também nossa.
Com estranhas ausências, perguntava ao meu pai para onde fora o Tio Zé, o Tio Manel, O Tio António, O Tio Valente, O Varandas, O Vaz, O Tio Nibau, O Toino, e ele dizia-me: «Foram à procura de futuro.» Só compreendi verdadeiramente esta palavra quando os meus pais e os meus irmãos emigraram para Setúbal…
Aprofundei o tema e fiquei a saber que o tal futuro era a emigração, sair da aldeia, sair do país, na procura de um salário compatível com as necessidades familiares.
Era necessário encontrar o melhor caminho, num regime que tinha todos os caminhos entroncados e vigiados com o apoio canino dos carabineiros de Espanha, que não davam tréguas aos emigrantes. O único caminho para se chegar ao «Futuro» era enveredar pela clandestinidade e de «assalto». Caminhos tortuosos percorridos em camionetas de transporte de animais, carrinhas fechadas, dormir em palheiros, nos rochedos, alimentados com conservas regadas com água fria dos ribeiros, que muitas vezes tinham de ser atravessados a nado. Comiam verdura quando encontravam alguma fruta abandonada e nabos crus. A via férrea de Cidade Rodrigo – Salamanca – Irun, comportava imensos riscos, às vezes tinham de saltar, misturados com o negrume da chaminé da máquina a carvão do comboio.
Assim, o processo do Futuro era demoroso, corriam-se riscos, muitos enganos e desenganos, sofrimento físico e psicológico. Falava-se em voz baixa, quase por mímica, com o engajador, algumas vezes no canto de uma taberna, nas esquinas de ruas sombrias como as suas vidas.
Este tinha uma rede organizada porque envolvia a passagem pelas fronteiras franquistas e francesas, estas mais acessíveis em termos de vigilância, mas mais difíceis na morfologia do terreno. Não era fácil ultrapassar os Pirenéus.
Quando o angariador era de localidades distantes, este ligava para o posto público do passador, a horas combinadas, e recebia como resposta: «hoje tenho seis sacas de batatas, cinco sacos de centeio, dois borregos para lhe vender.» Com este código sabia a quantidade de pessoas que era necessário passar para o Futuro. Só muito mais tarde as mulheres, em desespero, se aventuraram a seguir as pisadas dos seus maridos e filhos mais velhos e dar «O Salto».
As gentes arraianas tinham menos dificuldades em atravessar a fronteira de Espanha. Tinham o apoio logístico espanhol, juntamente com outros companheiros de diversas partes do país. Não levavam nem sacos nem sacolas… nada.
Eram feitos os pagamentos, que através dos tempos foram inflacionados conforme a procura do Futuro. Em 1958 uma viagem custava uma nota, uma D. Maria, e em 1964 já ia em cinco Donas Marias. Havia um ou outro desonesto que recebia o dinheiro e os deixava à sua sorte. Eram excepções.
Alguns inteligentes alugavam táxis, vestidos de sacerdotes a preceito, e, interceptados, diziam que iam para Lourdes em peregrinação ou visitar a Notre Dame de Paris.
Há aldeias que têm homenageado o Emigrante como figura maior da nossa história, com conferências, monumentos, efemérides, exprimindo a gratidão por este Herói ter dado FUTURO a milhares de portugueses e suas famílias.
Os engajadores eram de diversas profissões e culturas. Desde presidentes de junta, a padres, carpinteiros, pedreiros, lavradores, professores…
Já se passaram muitas gerações, as mais velhas ainda vêm todos os anos a Portugal «matar» saudades. Quando vires um emigrante não te esqueças que tudo o que tem lhe custou sangue, suor e lágrimas…
Muitos mais tarde alguns emigrantes regressaram, organizaram negócios na Pátria que os viu nascer, criaram emprego, prosperidade, sustentabilidade. Outros, aposentados, vieram para as suas origens cultivar os campos abandonados.
Todos, num momento ou outro, somos emigrantes à procura de FUTURO, algo que todos os povos aspiram legitimamente, o local para onde todos caminham.
Bem-vindos todos aqueles que ainda vêm «matar saudades» e animar as Festas de Verão das suas naturalidades.
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«Aldeia de Joanes», crónica de António Alves Fernandes
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Março de 2012)
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Caro AAFernandes:
O tema, embora genérico, é sempre adequado quando o publico alvo são as nossas gentes.
Não creio que exista alguém da nossa geração que não tenha conhecido os problemas que a procura do Futuro traziam a quem se atrevia a procurá-lo.
Eu, filho de emigrante, conheci na pele o resultado da procura do futuro por parte de meu pai. Para o bem (por que foi a forma de eu poder estudar) e para o mal (porque cresci sem ele e tive de o substituir muitas vezes, se é que isso é possivel)
Um abraço