No passado fim-de-semana, entre 27 e 30 de abril, realizaram-se no Fundão os Encontros Cinematográficos, na sua Edição n.º 8. «Um remar contra a maré», como disse ao meu amigo António Alves Fernandes, mas que enriquece a nossa Beira. A estória que lhes conto foi o encontro imaginário que tive com Michel Giacometti, um dos homenageados deste ano, tendo a organização apresentado um filme documental deste homem da nossa cultura, «Povo que Canta», na Igreja Matriz de Aldeia de Joanes, onde muitos e muitas protagonistas puderam reviver um passado que, graças a estes registos, não teima em desaparecer.

Fazia um calor abrasador. Decorria o verão de 1971. Estava sentado na esplanada do café junto ao edifício dos Paços do Conselho a ler o Jornal do Fundão, quando vejo chegar duas carrinhas da RTP. Era mesmo muito raro ver alguém da televisão, por estas bandas. Notava-se bem que estavam empoeiradas e que os ocupantes ansiavam por uma água fresca. Ao saírem reparo com espanto alguns a espreguiçar e fazerem exercícios de ginástica. O ruído daquelas conversas rompeu o silencio da quietude do principio da tarde.
No meio do grupo vejo uma estatura que não me era estranha. Magro, alto, ligeiramente curvado, uma barbinha acutilante fazendo-me lembrar um corsário. Já o tinha visto mas não me lembro onde. Sentaram-se perto de mim, numas mesas não muito distantes.
Só ele não levava chapéu. O pouco cabelo talvez fosse um talismã contra os raios solares. A conversa estava animada até que comecei a «apanhar» o enredo. Andavam a percorrer o Distrito de Castelo Branco com vista a registarem músicas e cantares populares. Vinham de Alcongosta e iam para a Aldeia de Joanes. O calor abrasador propôs-lhes um pequeno desvio para reforçar o «espírito». As senhoras queriam ir à casa de banho e todos precisam de se refrescar.
Deixei de ler o jornal e resolvi fixar o grupo. As conversas invadiam a minha tranquilidade e a voz estrangeirada do homem magro empurrava-me a memória para saber onde tinha visto aquele «figurino». Subitamente ao olhar para mim prendeu-me o olhar e esboçou um sorriso.
Levanta-se e vem na minha direcção – «Como vai Senhor Doutor? Já não se lembra de mim?»
Retribuo o cumprimento erguendo-me, enquanto apertava o botão do casaco, mas com a mesma sensação. Onde o terei conhecido?
Ao falar que se sentia muito melhor é que me lembrei. Foi meu doente quando exercia em Lisboa. Tinha imigrado de França e estava tuberculoso. Ao que parece o ar do nosso Interior acabou por o ajudar. Foi viver para Bragança e reconheceu o bem que lhe fez. Recordei-me entretanto da sua naturalidade, da ilha da Córsega, terra de Napoleão Bonaparte, mas que, tal como nós neste interior, sempre lutou pela sua autonomia. Aliás era um autonomista convicto e, por isso, teve nos anos cinquenta problemas com as autoridades francesas.
Convidei-o para sentar e acabámos por falar um pouco do que mais gostamos: cultura. Contou-me que percorreu todo aquele nordeste português, cheio de encanto e mistério, recolhendo excertos de música popular únicos no mundo. Efectivamente, quando doente, perdíamo-nos a falar no consultório, principalmente de cinema que era o que nos unia.
Na altura estava a tentar apoios para a recolha de registos de músicas tradicionais, tendo recorrido à Comissão de Etnomusicologia da Fundação Calouste de Gulbenkian, que mas fiquei agora saber que lhe foi negado. No entanto a RTP acabou por lhe abrir as portas, mas não foi fácil. No início avançou sozinho e, hoje, continua este trabalho de levantamento de Etnografia musical por toda a metrópole. Já percorreu o Minho, Algarve e Alentejo, tendo centenas de peças musicais registadas em gravador de bobines. Ainda tem esperança de ir até às Ilhas Adjacentes. Sendo um ilhéu seguramente será uma experiência que nunca mais esquecerá.
Presentemente está na RTP com um projecto que se chama «O Povo que Canta» tendo-se iniciado no ano passado. Andavam agora por terras das Beiras e seguiam para a Aldeia de Joanes, Souto da Casa e Lavacolhos.

Senti que estava na hora embora a conversa nos prendesse. Reparei que os colegas já estavam junto às carrinhas à sua espera. Levantei-me cumprimentando-o e desejando-lhe sucesso para o projecto. O aperto de mão foi firme e trocámos acenos de despedida.
Ao voltar a sentar-me, ainda antes de retomar a leitura do jornal, pensei para comigo: «Teria graça se um dia visse o trabalho que eles agora irão filmar!»
Aldeia de Joanes, 28 de Abril de 2018
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«No trilho das minhas memórias», crónica por António José Alçada
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Junho de 2017)
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O que a música portuguesa deve ao Michel Giacometti é imenso!!!
Muito bom, sobretudo a chamada de atenção para o arquivo dos registos que permitem manter vivos os momentos e a cultura de um Povo, apesar da dificuldade na abertura de portas que deveriam estar sempre abertas.
Obrigado um abraço
🙂