Estávamos em Junho de 2011, Jesué Pinharanda Gomes recebeu-nos em sua casa, no escritório recentemente despido dos milhares de livros que cedera à Câmara Municipal do Sabugal para constituir um acervo bibliográfico que daria depois lugar ao Centro de Estudos com o seu nome. Então com 71 anos, o pensador falou-nos da sua infância, dos ascendentes e outros familiares, dos amigos e da vida dura, mas feliz, em Quadrazais. (A terceira de três partes).
O povo de Quadrazais era muito religioso?
Toda agente ia à igreja e as crianças também, obrigatoriamente. Mas a verdade é que não sabíamos o que íamos lá fazer, não tínhamos consciência disso. Se faltássemos ralhavam-nos, ou até nos batiam, mas não havia para nós uma verdadeira noção do que estava a suceder. Aprendíamos a religião popular.
Com que idade começou a trabalhar ajudando os seus pais?
Com sete anos já levava as vacas para o lameiro. Levava-as para Vila Ferreira ou para o Salgueiral e garanto que as guardava com toda a atenção, nunca deixando que se evadissem para terrenos alheios. O lameiro de Vila Ferreira era fronteiro a terras onde se cultivavam batatas e outras culturas, no meio passava um pequeno riacho bordejado de pequenos amieiros, e era à sua sombra que eu me quedava de guarda, vigilante em todo o tempo, sem abandonar o local, sob pena de os animais invadirem a terra vizinha e comerem todo o renovo. Estava sempre à coca, cumprindo rigorosamente o meu dever.
O que lhe ensinaram em casa, antes de ir para a escola?
Só comecei a conhecer as letras na transição dos seis para os sete anos, porque a minha mãe comprou então o livro da primeira classe, onde me ensinou as letras, de modo que quando fui para a escola já as conhecias todas. Até já sabia desenhar algumas, porque a minha mãe também me comprara uma lousa. Acompanhava-a nos trabalhos agrícolas, na apanha da erva e do milho, e enquanto ela trabalhava eu sentava-me a desenhar na lousa. Mas tanta topadela dei com a lousa nas mãos, que um dia deixei-a cair e partiu-se, deixando-me muito desconsolado. Na parte da oralidade aprendi muito, sobretudo com as minhas avós. Nisso tive muita sorte, porque acompanhava-as nos serões, onde se juntavam as pessoas mais velhas, vindas de várias casas. Ouvia as coisas maravilhosas que diziam, sobre as tradições e costumes antigos, as histórias, as canções, as adivinhas e as orações. Havia uma oração de dormir que nunca mais esqueci:
Nesta cama me deitei
sete anjos encontrei
três aos pés
quatro à cabeceira
a Virgem Maria na dianteira.
A virgem Maria me disse
que não tivesse medo
nem de noite nem de dia
que rezasse um Padre Nosso
e uma Ave-Maria
que ela me guardaria.
Os avós tinham um papel importante na educação das crianças?
É verdade. Os nossos pais tinham de trabalhar e então eram os avós que tomavam conta de nós e nos preparavam para a vida. Hoje nada disso acontece, as crianças já nascem órfãs. Na altura éramos felicíssimos, mau grado as dificuldades.
Nesse tempo de criança, ouvia os adultos falar a gíria quadrazenha?
A gíria não foi construída para os quadrazenhos, mas pensada para uso dos contrabandistas quadrazenhos, por isso lhe chamamos gíria. Se me pergunta se alguém falava a gíria em Quadrazais, eu digo-lhe que não. Não me lembro de ouvir a gíria ser usada de forma sistemática pelas pessoas. Tê-la-ei ouvido a contrabandistas, a homens que diziam umas coisas esquisitas, palavras que eram um calão próprio da sua profissão. Recolhi de resto algumas, que mais tarde registei em livro. Mas a gíria se era usada, era quando os quadrazenhos contrabandistas não estavam em Quadrazais.
Ouviu então falar muito em contrabando?
Nunca ouvi dizer, por exemplo: «o meu pai é contrabandista». «Contrabando» e «contrabandista» eram duas palavras que estavam fora do nosso léxico, porque não havia a necessidade de as usar. Falava-se em «levar o carrego», como algo absolutamente normal. Não tínhamos qualquer noção de contrabando nem de comércio transfronteiriço, na medida em que, para nós, a Espanha não existia. Nunca se ia a Espanha, quanto muito ia-se a Valverde ou Navasfrias, mas sem se dizer que isso era ir a Espanha. Já espanhóis havia-os porque iam ali umas raparigas a vender alpergatas, que diziam ser espanholas, assim como vinha periodicamente um espanhol com um lobo empalhado, exibia-o e recebia esmolinhas. Para nós, garotos, era tudo gente que vinha de longe, como o era o homem, neste caso português, que trazia as «vistas», que era uma espécie de binóculo, por onde se viam fotografias de paisagens e de monumentos. Por isso eu não tinha a verdadeira noção de haver Espanha. Só na escola ganhei a consciência de que havia um país chamado Espanha e outro chamado Portugal e de que eu era deste último. E quando o professor explicou isto, usou o mapa de Augusto Landeiro, que estava na parede. Tratava-se do mapa da Península, com Espanha sem o nome das terras, e Portugal com várias cores e a indicação das províncias e assinalando os principais aglomerados populacionais, estradas, rios, serras. Aí é que ganhei a consciência de Portugal, assim como os outros rapazes da minha idade. No meu livro «Liberdade de Pensamento e Autonomia de Portugal» escrevi um texto em estilo pícaro, portanto algo brincalhão, onde dou a minha ideia de Espanha. Mas aquilo tinha um objectivo, que consta na conclusão. Trata-se de um texto filosófico, pelo que não se pode ver tudo à letra, é preciso entender. Essa visão pícara aparece como um acto de fé patriótico quando o autor do texto, perante a cidade de Toledo evoca a figura de Martim de Freitas como sinal de fidelidade a Portugal.
Nega o Iberismo?
Sempre afirmo primeiro a Lusitânia. Esta pergunta é desnecessária face ao meu livro doutrinal «Meditações Lusíadas». O livro que atrás citei, publicado em 1971, é quase profético. Por qualquer premonição que eu tive, já prevejo no livro que um país que não se pensa está condenado a ser dominado, daí o título que lhe dei – «Liberdade de Pensamento e Autonomia de Portugal». Tomei como ponto de partida a controvérsia da Filosofia Portuguesa, que nessa altura estava muito viva entre os que defendiam a sua existência e os que a negavam. Foi aí que escrevi o texto «Preludio ibérico em estilo pícaro», em ares de brincadeira. A chave está na sua conclusão: «Nesta safara charneca de Castela… o exemplo de lealdade de Martim de Freitas, enfiando as chaves de Coimbra no braço do monarca, que infeliz de não lhe ser consentida a liberdade…». Como vê não é nacionalismo, é Pensamento Português e é a realidade. Cada um deve pensar por si e não pela cabeça dos outros, cada um pensa como de facto é e não como o outro quer que ele pense. É o que acontece com o problema de algumas pessoas em Portugal. Ficam muito constrangidas por causa disto, mas esta é a realidade. Eduardo Lourenço, por exemplo, é um pensador iberista, e há outros afrancesados. O país, como já escrevi algures, está cheio de filósofos franceses e alemães. Para estudar Filosofia já não bastam os filósofos franceses de cá, tem que se ir para Paris.
Naquele tempo já se ouviam as notícias pela rádio?
Não havia telefonias em Quadrazais. A primeira que chegou à povoação, quando eu tinha os meus cinco anos, foi levada por um homem que tinha vivido em Lisboa, e ali foi abrir uma barbearia, mas que durou pouco, pois em Quadrazais havia um barbeiro a quem as pessoas pagavam um alqueire de pão para todo o ano, pelo que não era fácil surgir outro barbeiro.
Nasceu e cresceu num tempo de ditadura, isso fazia-se sentir em Quadrazais?
A maior alegria era a gente ter o pãozinho de cada dia, de resto éramos felizes e éramos livres. A diferença que nos parecia fazer perigar essa liberdade que sentíamos era quando passava a Guarda Fiscal, que tinha um posto em Vale de Espinho, e atravessava com uma certa frequência Quadrazais, sobretudo a cavalo quando os guardas iam e vinham do Sabugal. Nessas ocasiões gerava-se um grande temor, porque a Guarda Fiscal era muito temida. O povo, de um modo geral, mesmo os que não tinham problemas de consciência, tinha respeito pela autoridade e evitavam relacionar-se com os guardas. O facto de uma pessoa estar a falar com um guarda fiscal podia dar a ideia que estava a denunciar. Havia a consciência de que muitos homens viviam do contrabando, como carregadores, e que desafiavam a lei. Aplicava-se aqui o conceito de Omertá (a vergonha), que protege e leva a que o elemento da comunidade não fale, não ouça e não participe em actos que possam fazer perigar a sua família e os seus amigos. Tínhamos a noção de que havia contrabando, e quando já andávamos na escola, era frequente brincarmos aos contrabandistas. Uns faziam de guardas e outros de contrabandistas. Aliás, nunca poderei esquecer uma cena que observei aos sete anos, no lugar de S. Sebastião. O professor deixou-nos ir brincar às escondidas para os Barreiros e quando andávamos atrás uns dos outros, de repente, vindo dos pinhais, apareceram homens com o carrego às costas e detrás dos Barreiros saltaram-lhes os guardas fiscais. Nós, garotos, fugimos assustados e não assistimos ao resto da cena. Soubemos depois que os homens atiraram com os carregos e fugiram, embora um deles ficasse aprisionado.
Ganhou nesse tempo uma relação muito forte com a cultura popular?
A minha relação com a cultura da aldeia foi tão forte que, quando fui para a Guarda, comecei por escrever coisas acerca de Quadrazais, manuscritos com a descrição dos usos e costumes. Tudo isso levou a que os primeiros artigos que consegui depois publicar em Lisboa, pagos (recebi 200 escudos por cada artigo), foram editados numa publicação prestigiada chamada «Mensário das Casas do Povo». Depois ainda os aperfeiçoei e vim a publicá-los também na «Revista de Portugal», dedicada à Linguística e à Etnografia, que era igualmente muito prestigiada. Não me pagaram, mas deram-me 50 separatas da revista com os meus textos. Foi a «Introdução à Etnografia Infantil», «A Gíria de Quadrazais», «O Cancioneiro de Quadrazais» e a narrativa «Da Quaresma à Festa das Flores» – quatro artigos que ali publiquei e de que me deram separatas. Foi por aqui que eu comecei. Quando, em 1968, já não me restava memória para a etnografia quadrazenha, fiz o livro «Práticas de Etnografia» e arrumei o assunto.
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«Contraponto», de Paulo Leitão Batista
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