Estávamos em Junho de 2011, Jesué Pinharanda Gomes recebeu-nos em sua casa, no escritório recentemente despido dos milhares de livros que cedera à Câmara Municipal do Sabugal para constituir um acervo bibliográfico que daria depois lugar ao Centro de Estudos com o seu nome. Então com 71 anos, o pensador falou-nos da sua infância, dos ascendentes e outros familiares, dos amigos e da vida dura, mas feliz, em Quadrazais. (Parte 2 de 3.)

(Continuação.)
Fale-nos dos seus pais. Eram ambos de Quadrazais e descendentes de famílias quadrazenhas?
A minha mãe, Luísa Rodrigues Bicheira, era descendente de uma família popular de Quadrazais, de gente remediada, sem grandes haveres. Era filha de Manuel Morais Ginja e de Maria Luísa Rodrigues Bicheira. A minha avó Maria Luísa, que era a mais velha de sete irmãs, ficou órfã muito nova e foi ela, ainda pequena, com nove ou dez anos, que tomou conta das irmãs, trabalhando a cozer pão. Comprava a farinha, amassava e cozia o pão para vender, assim conseguindo sustentar a casa. Da parte da minha mãe era portanto gente modesta, que não tinha propriedades, a não ser bocaditos de terras aqui e ali. Já o meu avô era ambulante. Vendia fazendas por várias terras, passando longas semanas e meses longe de Quadrazais. Tinha uma carroça e um cavalo chamado Marquês, de que me recordo ainda muito bem.
Esse seu avô também era contrabandista?
O ofício de ambulante pouco ou nada tinha a ver com o contrabando. Os ambulantes até podiam comprar contrabando, para vender, mas isso era esporádico. Acontecia quando algum cliente desejasse uma mercadoria espanhola, mas no mais trabalhavam com mercadoria comprada em fábricas de atoalhados, fazendas brancas e linho. Um dos fornecedores dos quadrazenhos era um fabricante de têxteis, de Gouveia, que mais tarde se fixou em Guimarães, o senhor Alves de Oliveira. Um dos seus filhos veio a ser historiador, e, no livro que editei dedicado a Nuno de Montemor, evoca uma viagem que fez com o pai a Quadrazais, para irem ter com Anacleto dos Reis Novais, que era um homem muito rico. O Anacleto tinha um filho que era afilhado do senhor Oliveira, pelo que este todos os anos ia a Quadrazais. Mas para além das razões de compadrio, também acontecia que o Anacleto actuava como avalista dos ambulantes quadrazenhos que se abasteciam na fábrica do senhor Oliveira. Eles escreviam a pedir mercadoria e o senhor Oliveira expedia as peças indicadas, mas estando seguro pelo senhor Anacleto, que avalizava as pessoas. Neste artigo, o Alves de Oliveira (filho) conta a viagem a Quadrazais com o pai. O que mais o impressionou, segundo o seu testemunho, foi ter visto as cegonhas na torre do sino em Quadrazais. Foi uma imagem que disse nunca mais ter esquecido, certamente porque nunca tinha visto as cegonhas numa torre de igreja. Esta viagem aconteceu em Março, tendo assistido à festa do Aniversário das Almas, ouvindo os gritos estridentes das quadrazenhas que abafavam a voz do pregador. Naquele tempo o sermão só era bom quando provocava as lágrimas e os gritos das mulheres.
Se ambulantes não eram contrabandistas, o que era feito da mítica aldeia de Quadrazais, berço de contrabandistas? Isso era uma coisa do passado?
No tempo em que vivi na aldeia, os contrabandistas resumiam-se a «passadores», ou seja, homens que carregavam as mercadorias de e para Espanha. Contrabandistas propriamente ditos eram meia dúzia, que iam a Espanha comprar e depois iam vender o produto contrabandeado para a Guarda, Covilhã, Coimbra ou Lisboa. Houve um a quem a Guarda Fiscal apanhou mercadoria em casa e que tinha um moinho e um comércio, esse sim contrabandeava e vendia artigos espanhóis. No mais, quem fazia contrabando, o chamado «pequeno contrabando», eram algumas mulheres, que iam vender a mercadoria à Guarda e à Covilhã. Contrabandeavam roupa interior e produtos de beleza, assim como sarjas para fazer togas e roupas finas. Iam muitas vezes a Espanha, também para trazerem roupa para elas próprias e para a família. Era o chamado contrabando doméstico, que era o mesmo que o ir buscar pão e azeite para consumo caseiro, situação que era muito frequente. Já os «passadores», ou «carregadores», eram homens que não tinham terras, nem gostavam de trabalhar na lavoura, e que iam a Espanha carregando o contrabando, ganhando em cada viagem cerca de 40 escudos. Trabalhavam para negociantes de fora.
Então o contrabando em Quadrazais, nessa altura, não seria muito diferente do que era praticado nas demais terras raianas suas vizinhas?
Era igual. Transportavam contrabando para grandes negociantes, levando às costas carregos de café em sacas. Também transportavam casemiras e fazendas de pana que era o nome que davam à bombazina, recebendo o pagamento por esse serviço de transporte. Os contrabandistas ricos eram do Soito.
E quanto à família do seu pai? Ao que sei era uma família aristocrata.
Da parte de meu pai, há a dizer que a minha bisavó, Maria José Gomes Freire Vieira de Azevedo, que morreu em 1919, estava casada com António Caldeira Gonçalves Pinharanda, do Sabugal. Daqui é que vinha uma certa aristocracia. O meu bisavô era descendente do tabelião do Sabugal e a minha bisavó era filha de um capitão mor, de nome Vieira, que depois ficou conhecido pelo Major, proprietário da afamada Quinta do Major, que abarcava uma boa parte da Serra da Malcata. Tiveram oito filhos, entre eles o meu avô Alberto Gonçalves Pinharanda. Esse meu avô Alberto, que era o filho mais velho, conheceu uma mulher muito gentil de Quadrazais, filha do povo, chamada Maria Torrinha, com a qual veio a casar. O pai da Maria Torrinha chamava-se Manuel Torro e era almocreve, ou azemel, transportando em machos mercadorias de Quadrazais e do Sabugal para Penamacor e Monsanto, de lá trazendo outras coisas. Fazia troca de produtos agrícolas, como azeite, figos, nozes e vinhos. Sendo azemel e homem muito poupado, comprou progressivamente terras e comprou também um moinho com açude e terras anexas, no lugar do Salgueiral. Este moinho transformou-se depois no cancro da família. Tinha o açude mais largo de Quadrazais e um ano foi destruído pela cheia, o que levou à venda de propriedades para reparar o açude. Ainda essa reconstrução não estava concluída e já saía uma lei a obrigar os moinhos a possuírem peneirador, isto é, uma peneireira para separar a farinha que saía das mós. A farinha entrava num canal, daí ia para o peneirador onde se separava do farelo, caindo logo nas sacas. Isso obrigou a vender mais terras, porque era um equipamento muito caro, uma autêntica máquina com arca e mecanismos diversos. Foi por isso que este moinho se tornaria mais tarde um cancro para a economia familiar, acrescendo ao problema de haver vários moinhos em Quadrazais. Por mais que moessem, não se produzia cereal para garantir a rentabilidade de todos eles. O moinho da Escaleira ainda apanhava fregueses de Vale de Espinho, mas os restantes, incluindo o do meu avô, abasteciam-se apenas de Quadrazais. Quando havia seca o rio ficavam sem água e não era possível produzir na mesma forma. Esperava-se que o açude enchesse durante a noite para depois fazer apenas uma hora de moída, de madrugada. Mas, voltando à história da minha descendência paterna, a minha avó Torrinha casou com o Alberto, que era rico e recebeu o seu dote. Mas o meu avô Alberto tinha uma sina na vida: era um jogador inveterado. Jogou tudo o que pode até tudo perder. Tinha uma boa casa agrícola e destruiu tudo com o jogo. Jogou de tal forma que quando já nada tinha, vendo-se na desgraça, resolveu imigrar para a Argentina, deixando o meu pai, Josué, com um ano de vida, nos braços da mãe, a Maria Torrinha. Isto passou-se por volta de 1920.
E o seu avô regressou capaz de refazer a vida?
Nunca mais regressou da Argentina. Embarcou em Cadiz, levando no bolso 250 escudos que a minha avó, condoída, lhe arranjou. Passados dois anos enviou da Argentina esse dinheiro, e a partir daí nunca mais se soube nada dele. Quando eu era já crescido, o meu tio Amândio, irmão de minha avó, que foi um senhor na vida, procurou localizá-lo por todos os meios diplomáticos. Ainda conseguiu saber algo dele por volta de 1940, descobrindo que estava em Assuncion, mas perdeu-lhe o rasto. Eu julgo que ele terá tido filhos, pois sendo o nome Pinharanda muito raro, ainda vim a saber que há pessoas com o apelido «Penharanda» na Argentina.
Entretanto a sua avó ficou numa situação difícil do ponto de vista económico?
Minha avó ficou com o que veio a herdar dos pais, porque da parte do marido não ficou rigorosamente com nada.
Os seus pais casaram e enfrentaram dificuldades, para mais numa altura que coincidiu com o fim da guerra civil de Espanha?
Na altura em que nasci a guerra civil de Espanha já não se fazia sentir, embora ainda viessem do lado de lá da fronteira mulheres a vender alpergatas, tocando-as por qualquer coisa: pão, milho ou feijão: Ainda eram os resquícios da miséria que resultara da guerra. Foi uma época muito difícil. Com o eclodir da segunda Guerra Mundial generalizou-se a carência de tudo. Praticamente não havia azeite. O pouco que havia vinha de Penamacor ou de Espanha, e eram borras. E minha mãe comprava esse azeite de borras, que decantava. Esse azeite tinha um sabor óptimo, apesar de algo rançoso. As borras ficavam para olear o eixo do carro de bois. Não havia fósforos. A gente tinha que guardar um tição ou, quando saíamos de casa, guardávamos umas brasas cobertas por cinza na lareira. Se se apagassem, tínhamos que ir à vizinha pedir uma brasa. O sal havia muito pouco, e era caro. Massa e arroz eram coisa rara. Comíamos o que a terra dava, sendo a base da alimentação o pão e a batata e, numa parte do ano, as castanhas. A minha avó tinha um souto e como ela só vivia com o irmão, as castanhas também davam para nós.
A sua avó Torrinha, mãe do seu pai, tinha apenas esse irmão que vivia com ela?
Sim, apenas tinha um irmão, que era o meu tio Manuel, que ficou alienado muito cedo, sendo contudo uma excelente pessoa. Ele gostava muito de mim. Para ele eu era o «garoto», e quando fui para a Guarda estudar, ele veio para janela da casa do Vale a praguejar. Foi um comício. Praguejou contra Deus e contra o diabo.
Voltando à forma de vida na altura da guerra…
Era, como já disse, uma miséria pegada. Havia pessoas que conseguiam senhas de racionamento para compararem alguns bens essenciais, mas isso era para as famílias que nada tinham. Nós não conseguíamos garantir qualquer tipo de ajuda, porque havia a fama.
A fama?
Sim, havia um mito acerca da nossa situação financeira e patrimonial. Criara-se em Quadrazais a ideia de que os meus pais eram ricos porque tinham muitas terras. Ora isso era um perfeito disparate. E falo nisto com o coração nas mãos. Meus pais tinham o que a minha mãe herdara da morte do pai. Eram umas hortinhas no Marco, uma era pequeníssima, com uns metros. Tinham também o moinho. Mas nada disso era do meu pai. Meu pai não tinha rigorosamente nada. Quem tinha alguma coisa era minha avó paterna e meu tio, irmão dela, e o meu pai servia-se do que era deles, cultivando-lhe as terras. Quando precisavam de vender terras, nomeadamente por causa do moinho ou da vaca que tinha morrido, apenas vendiam os bocadinhos que eram da minha mãe. Porque a minha avó paterna nunca podia vender nada uma vez que não se sabia do paradeiro do marido, que tinha ido para a Argentina. Tinham de passar 35 anos sem qualquer notícia dele. Se saiu em 1920, só em 1955 é que podia usufruir por inteiro dos seus bens. Em conclusão: nós não éramos ricos, embora tivéssemos essa fama.
No entanto os seus antepassados tinham sido ricos, para os padrões da época?
O meu avô Alberto era de facto rico. Era proprietário da oitava parte da Quinta do Major, na Serra da Malcata, porque eram oito irmãos, mas perdeu tudo no jogo, como já contei.
O que recorda da sua infância?
Há aqui uma questão temporal importante. Eu nasci em 1939, mas saí de Quadrazais em 1950, com 11 anos feitos, porque depois vivi na Guarda, vindo a Quadrazais apenas esporadicamente. A minha tia, em cuja casa fiquei alojado na Guarda, não queria que eu voltasse a Quadrazais e fosse subtraído à sua tutela. Assim, a minha vida na aldeia foi muito breve e numa idade em que não tive tempo para me aperceber de muitas coisas. Porém estive lá o tempo suficiente para me aperceber que a vida não era fácil. E ser criança em Quadrazais era particularmente difícil. Eram tempos de miséria e de grande provação. Os nossos brinquedos eram pedrinhas e pauzinhos. Outra coisa não havia. As raparigas faziam as matrafonas, as bonecas de pano, e os rapazes jogavam à pedrinha, ao ferro, à macaca, à choina ou à belharda. Se uma avó trouxesse da feira do Sabugal um pífaro de barro, era uma festa. E todos tinham de tocar, o que era razão para grandes amuos e zangas entre os rapazes, que faziam birras: «emprestas àquele e não me emprestas a mim», «eu também quero…», às tantas o pífaro partia-se e era um desconsolo para todos, arriscando ainda o dono a levar duas lambadas por não ter sido diligente. Como crianças tínhamos, de facto, pouco ou nada para brincar, mas tínhamo-nos uns aos outros. Íamos a casa uns dos outros, e comíamos lá. Ainda me recordo que gostava do caldo de batatas da Ti Narcisa, cujo marido era o coveiro, um bebedolas. Tinha três filhos ainda garotos, e era muito pobre, pois nem terras tinha para cultivar. O pouco que ganhava era a fazer meias que vendia e o marido recebia algum dinheiro quando enterrava um morto. Ela ia a Vale de Espinho, ao Soito e a Malcata a pedir esmola, recebendo batatas, trancaços de pão e, às vezes, uma chouriça ou um bocado de toucinho. Chegava a casa ao lusco-fusco e fazia então um caldo de batatas. Eu era amigo dos filhos, com quem brincava, e gostava muito desse caldo da Ti Narcisa. Quando topava que em casa dela se ia servir o caldo era para lá que me escapava, após recusar o caldo da minha avó, que vivia em frente. Comia do barranhão, como eles, o que para mim era uma satisfação. Por isso digo que não tínhamos nada, mas tínhamo-nos uns aos outros e éramos felizes e amigos. Não me recordo de haver rapazes de quem não gostasse. Mesmo nos casos de zangas entre vizinhos, isso não afectava as relações de amizade e cumplicidade entre as crianças.
Não tendo irmãos, esse companheirismo com as outras crianças tinha ainda mais importância?
Claro que sim. Eu era filho único e brincava na rua com os demais rapazes – naquele tempo as raparigas não se juntavam aos rapazes. Andava, como os outros, descalço, porque calçar sapatos era para nós uma grande chatice. Jogávamos à pedrada, onde sempre levei mais do que dei, porque tinha muito má pontaria. Mas ainda levei com algumas pedras, até me resta uma marca na cabeça, resultante de uma pedrada que me foi dada pelo Nelson Salada, que depois foi paraquedista. Quando era verão íamos às vinhas roubar uvas. Quadrazais não era terra de pomares, havia uma ou outra macieira, figueira ou pereira, mas muito pouco.
Praticava-se uma agricultura de subsistência?
A agricultura em Quadrazais consistia fundamentalmente na produção de centeio e batatas, embora também se colhessem muitas castanhas, mas estas não requeriam grandes trabalhos, a não ser na apanha. Nas terras regadias cultivava-se o feijão e o milho. O gravanço e os chícharos eram feitos em terra secadal. Cultivávamos a batata no chão da Galiana, que era grande, e onde colhíamos batata que dava para todo o ano, e ainda sobrava. Minha avó Maria Luísa cultivava umas hortinhas, que para ela era o suficiente. Já a minha avó Torrinha cultivava um chão na Vila Ferreira, que dava perfeitamente para ela e o irmão com quem vivia.
Comia-se apenas o que se cultivava?
O comer era à base do que a terra dava, sobretudo do pão e da batata. Com as batatas fazia-se o caldo, a que se juntavam couves ou nabiças, mas quando não havia nabiças nem couves, fazia-se com saramagos, que eram apanhados nas searas. Cortavam-se-lhe as raízes, lavavam-se e traçavam-se aos pedaços para a panela. Era muito agradável aquele caldo de saramagos, que tinha um travo amargo. Ao almoço, logo de manhã, comia-se caldo, ao jantar, que era ao meio-dia, comia-se batata cozida e à ceia, à noite, voltava a comer-se o caldo de batata. O resto era pão centeio, que o trigo, se algum havia, era para os dias das festas ou para fazer as filhós no Natal ou os coscorões pela Páscoa. Ainda me lembro de receber um trancaço de pão quando ia a casa de alguém. Se fosse um trancaço de trigo era muito melhor, mas isso era raro. No verão comiam-se saladas de alface, que era cultivada, mas também de plantas espontâneas, como a meruje e as azedas. As saladas eram bem avinagradas. Havia homens que passavam o dia agarrados à enxada, e cuja ceia era, no Verão, uma simples salada. Quase não se comia carne, isso era um luxo. As pragmáticas costumeiras e as leis régias portuguesas, que vigoravam desde o século XIX, não permitiam o abate de animais de tiro, porque eram necessários à lavoura. Em consequência, ninguém matava uma vaca para comer. Isso seria um crime ou, mais do que isso, um pecado. Matar um bezerro também não era possível, era para substituir as vacas velhas no trabalho ou então para ir ao mercado do Sabugal, onde se vendia para pagar os estudos a um filho na Guarda ou para fazer face a uma despesas extraordinária. Vaca à mesa, era, como diz Leal Freire, apenas quando algum animal morria de morte não natural, por acidente. Nesse caso a vaca era vendida ao açougue, que geralmente havia em loja anexa às tabernas, que a abria e desmanchava, vendendo-a depois ao povo, que a comprava como que por caridade, de modo a que o dono da vaca fosse compensado da desgraça que tivera. Isso aconteceu-nos duas vezes. Uma no ano em que nasci, como já contei, e outra mais tarde, quando nos morreu uma bezerra que era uma estampa. Meu pai sempre foi muito carinhoso com a bezerra e, em vez de começar a dominá-la logo cedo para a pôr ao carro, não, dava-lhe liberdade. Tanta liberdade lhe deu que um dia, vínhamos de Vila Ferreira, ela saltou para fora do caminho, caindo num desfiladeiro. Rebentou e foi então vendida para comer. Mas nós lá em casa, nem o cheiro, porque ficámos de luto.
Era então mesmo muito raro comer carne de vaca?
Raríssimo, se não de todo impossível. Apareceu na cidade o chamado cozido à portuguesa, que junta carnes variadas, incluindo a carne de vaca, mas isso não é uma bênção da cultura rural. Esse prato é um produto da cultura urbana, burguesa e proletária. Daí que eu tenho dito que o cozido à portuguesa, para ser verdadeiramente chamado, deve ser «cozido à proletário», porque metem no cozido tudo aquilo que na tradição antiga não se podia comer, especialmente no que respeita a carnes vivas. Então nas aldeias matava-se uma vaca regularmente para se fazer esse prato? Isso era impossível. O nosso cozido era fundamentalmente composto pelas couves e batatas, acompanhadas pelos enchidos e um ou outro pedaço de porco vindo da salgadeira. Essas carnes eram os «condutos». Conduto queria dizer «ajudar a conduzir», porque o cozido era verdadeiramente composto por vegetais e os condutos apenas acompanhavam para ajudar a engolir. As famílias com maior rigor disciplinar, dividiam os enchidos pelas crianças depois de terem comido as batatas e as couves, numa espécie de prémio para quem tudo comesse. Em nossa casa também se comia, de vez em quando, um prato de que minha mãe gostava muito, que era sangue guisado. Comprava o sangue ao taberneiro (de borrego ou cabrito morto no açougue – quando o havia) e depois contava-o aos pedaços e guisava-o na sertã com batatas. Havia também as fressuras, que eram os pulmões, o fígado e o baço, que eram também guisados com batatas e que era igualmente muito bom. O Manal e os Cordeiros, taberneiros, tinham açougues anexos ao estabelecimento, onde matavam ovelhas e cabras velhas, ou então cabritos e borregos. Matavam-se sobretudo rezes do sexo masculino, que as fêmeas eram para a reprodução. Matavam uma ou duas vezes por mês, embora por altura das festas se matasse mais.
A terra também dava fruta?
Em Quadrazais não havia grande fruta. Alguma que se comia vinha de fora. Por exemplo, os figos vinham de Santo Estêvão e do Casteleiro, que pessoas de lá trocavam por feijão ou por milho. Eu gostava muito dos figos, assim como a minha mãe (meu pai não lhes tocava). Quando minha mãe arranjava figos, comíamos uma barrigada deles, e pronto, acabavam-se. No Ozendo havia peras, onde a rapaziada ia por elas. Aliás isso para mim sempre foi, e ainda é, um enigma: nunca cheguei a saber se iam às peras porque lhas davam ou se as iam roubar, mas traziam sacadas.
Quadrazais era então uma aldeia que do ponto de vista alimentar era praticamente auto-suficiente?
Sim, porque a base da alimentação eram, com disse, os produtos cultivados, que a terra dava, sobretudo o pão e a batata. De fora vinham o bacalhau e as sardinhas, que chegavam em caixas com sal, vindas de Caria, onde chegavam de comboio e depois havia quem fosse pelas aldeias vendê-las. De fora vinha também a fruta, como cerejas e figos.
E arroz, massa e outros produtos que não eram de produção local, de onde provinham?
Isso comprava-se nos merceeiros da terra, que eram três: o José Manuel Barreiros, a Ti Maria Pinheirinha, e o Saloio. Mas eram mercearias que vendiam de tudo, desde arroz, açúcar, massa, sal, petróleo, azeite, pimento (colorau), e até cotim para fazer calças e roupa diversa. Mas as pessoas pouco comprava disso, só o essencial, o resto, no que toca a comidas, consumiam o que tiravam da terra.
Em Quadrazais produzia-se vinho?
Muito pouco. Quem tinha vinhas grandes e produzia vinho eram o Correia, o Saloio, o meu primo Zezinho Vieira, a ti Eufémia, o Anacleto, e poucos mais. De resto o vinho era comprado fora, sobretudo do Casteleiro e Santo Estêvão, do lado de baixo, bem como da Miuzela e Porto de Ovelha, do lado de cima. Meu pai fazia carretos e por vezes trazia vinho.
O dinheiro não abundava?
Tínhamos de tudo para comer e não morrer de fome, mas havia uma coisa de grande carestia, que era o dinheiro. Havia muito pouco dinheiro e negociava-se com troca de géneros. Há até uma questão macrofinanceira, que foi a transição dos Réis para os Escudos, o que só sucedeu verdadeiramente em 1932, com Salazar, que tornou obrigatório o uso do Escudo, vinte anos depois da sua criação. Isso, por si só, explica em parte a falta de moeda. Quem conseguia algum dinheiro eram os carregadores, que recebiam em moeda o pagamento do transporte para Espanha. Os lavradores, como era o caso de meu pai, faziam carretos, indo buscar pedra para uma casa, transportando uma pipa de vinho de uma terra para a outra, indo à estação da Cerdeira levar uma carrada de batatas ou de centeio, serviços que, quando eram feitos a soldo de negociantes de fora, lhe eram pagos em dinheiro.
(Continua.)
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«À fala com…», por Paulo Leitão Batista
Caro Pinharanda Gomes,
Sendo embora uma dezena e meia de anos mais novo, revejo-me, como estudante que também foi para a Guarda em quase todas as vivências e tudo o que descreve. Contudo, atrevo-me a tentar desfazer-lhe um enigma. As peras do Ozendo que a rapaziada levava para Quadrazais não eram por certo roubadas. Na época em que as pereiras estavam “carregadinhas”, as pessoas do Ozendo que sempre foram generosas, não se importavam que a “canalha” entenda-se os garotos, fossem pelas peras. Era preferível a estragarem-se. Era uso, a miudagem juntar-se em bandos, às vezes também de aldeias vizinhas incluindo Quadrazais, a Torre, o Soito… “assaltavam” aquelas gigantescas pereiras e colhiam sacadas delas. Por vezes como as peras ainda não estavam maduras íamos esconde-las no meio das Medas de centeio na eira no espécie de esconde… esconde…
Daí que a rapazada de Quadrazais aparecesse por lá com sacadas de peras que como quem diz com os bolsos e chapéus cheios.