HOMENAGEM AO MEU TIVOLI – Nas aldeias quase todas as famílias têm animais: um burro, um cão ou um gato. Quem tem espaço em frente da casa, o curral, e um telheiro (cabanal) tem ainda um cavalo, galinhas e, às vezes, coelhos, patos, perús ou mesmo gansos. Antigamente usavam a loije, andar térreo, para as vacas, burros ou cavalos. É o que acontecia frequentemente com os lavradores que tinham vacas. Havia quem tivesse galinhas ou porcos num pequeno espaço debaixo da escaleira (no poleiro das pitas) e (na cortelha), que se passeavam durante o dia pelas ruas, tal como os cães. (Parte 1 de 2).

Meus pais tiveram todos esses animais. O cão que primeiramente conheci, ainda na casa de baixo, foi o Tivoli. Um cão médio, todo preto, cuja raça devia ser uma mistura, mais propriamente um vulgar rafeiro, que não o rafeiro alentejano. Acompanhava-me para toda a parte, tornando-se o meu amigo preferido de brincadeiras. Quando mudámos para a casa nova, ao Santo António, lá foi ele também. Acompanhou-me até aos 10 anos, altura em que fui para o seminário de Vila Viçosa. Deve ter sentido a minha ausência e suspirado pela minha volta! Não menos senti eu a sua falta! Mas, a distância faz abrandar a falta de algo que amamos, que não o esquecimento total.
Em férias, lá o tinha aos saltos para mim, contente tanto quanto eu. Obrigado Tivoli por não me teres esquecido e não me teres trocado por novo amor! Que saudades que eu sentia de ti! Tu fazias e ainda fazes parte da minha infância. Jamais te esquecerei. A ponto de ter dado o teu nome ao único cão que tive só meu. Tivoli tinha de ser qualquer cão que eu tivesse, porque tu eras o modelo de cão que eu queria ter. Meu amigo e companheiro!
Querias acompanhar-me à escola, mas aí não era lugar para ti. Não me podias ver jogar a bola, a choina e o pião, ou até mesmo o bicho e o castelo, porque em tudo isso algo se movimentava e tu querias apanhar o movimento com os dentes. Os outros meninos correr-te-iam à pedrada e eu teria de me haver com eles. Se me acompanhasses no jogo do corcho, que aconteceria quando visses alguém a dar-me uma correada? Certamente te atirarias a ele para me defender e lá teríamos novamente sarilhos! O mesmo aconteceria se me visses ser atacado por rascalheiros na época do Entrudo. Nessa mesma época seguias-me à noite a pôr um defumeço na porta do ti Cabral, com açúcar, para cheirar bem, porque era gente amiga. Não sei se pusemos algum ruím com malaguetas para gente má, pois tu espirrarias logo com o cheiro e estragarias o segredo.
No dia de Entrudo, nos balhos ao Vale, lá estavas a meu lado, saltando comigo de galhada na mão bem ao alto, para enrolar as fitas que deitavam. Lá apanhavas alguma pisadela de tantos outros que faziam o mesmo que o teu dono. O pior era quando alguém se lembrava de mandar para dentro do balho algum rebusca-pés ou bomba. Fugias a sete pés do rodopio dos rebusca-pés e desaparecias ao ouvir o troar das bombas. Lembravam-te os foguetes da St’Ofêmia, dos quais te escondias debaixo da cama. Até nas procissões me acompanhavas, parecendo querer rezar comigo orações que não te ensinara. Mas tinha de te mandar para casa, que procissões não eram lugar para cães. Também não podias acompanhar-me em certos jogos como o rocanacó, pois logo denunciarias onde eu estava escondido.
Já quando eu fazia um mangual, ias comigo ao Ti Tozinho ou ao Carrapatinho buscar preguinhos para pregar o capulo à mangueira. E, enquanto os pregava, tu fitavas-me atento ao meu trabalho, mas ruidoso pelo barulho do martelar os preguinhos. Ao fazer um carrinho de madeira com rodas de borracha das solas das alpergatas e sandálias espanholas, parecia que querias aprender ou ajudar-me no trabalho.
Mal eu soprava na carapela, que acabara de fazer duma canafrecha, para que rodasse, eis que davas saltos para apanhar o vento que ela produzia, excitado pelo movimento. Se fazia um chapéu de dois bicos de jornal e o punha na cabeça, rebolavas-te como a rir do palhaço que eu parecia. E quando imitava os comediantes que, de quando, visitavam a aldeia, dependurado dumas cordas, fazendo comédias no trapézio, saltavas como a querer baloiçar-te também.
Na guarda da vinha, tu lá estavas ao nosso lado, de mim, do Tó e do Quim, pronto a ladrar ao menor sinal de gente que se aproximasse da vinha. Tu é que eras o verdadeiro guarda!
Quando no Inverno eu usava tamancos ferrados e com brochas de lado e por baixo, fazendo uma barulhaça pelas calçadas, tu ficavas excitado, de orelhas no ar à escuta para decifrares o enigma de onde viria tamanho ruído. Antes de os calçar, eu baloiçava dentro deles uma brasa tirada do lume para os aquecer. O teu ar circunspecto era de alguém que pensava: o meu dono deve estar maluco a querer queimar a sola de pau dos tamancos! Ficavas, porém, contente quando eu os calçava e não vias fumo a assinalar fogo. E quando fazia uns samancos que cortava na malhada do pai ao Mocho e trepava para cima das suas galhas, ficando alto que nem um gigante, tu olhavas-me de baixo para cima admirado como eu tinha crescido tanto em tão pouco tempo. Que pensamentos ocupariam a tua cabeça perante tamanho fenómeno! Seria da neve? –pensarias.
Mas, mais admirado e confuso ficavas ao veres o Liseu, o Romero, o Chico da Baré, o C’stantino, o Tó, o Cisco, o Sono e sei lá quantos mais da vizinhança também montados nos seus samancos, tornados gigantes como eu, formando um exército que transpunha a neve, quais soldados de Aníbal a transpor os Alpes! Meu Deus! Que iria na tua cabeça? E quando eu caia sobre a neve e ficava coberto de flocos brancos, aproximavas-te de mim, choroso, pensando que eu tivesse partido alguma perna ou braço. Mas não. Levantava-me inteirinho para teu gáudio, que exprimias com uns latidos.
– Como te sentiste quando estive com sarampo embrulhado na colcha vermelha da Aldeia Velha, bebendo só água aquecida ao sol à janela e depois deitei pela boca aquela bicha solitária com mais de um metro? Nessa altura não olhei para ti. Mas estou certo que pensaste que eu iria morrer e desejaste acompanhar-me na cova.
– Como te sentiste quando pegou fogo o Tó e a mãe ao atalhar-lhe os sapos?
– E quando viste a tua amiga burra ser sangrada pelo Sr. Mateus?
– E quando viste o Zé da Reis estender no chão da loije da casa de baixo a tela para fazer um oleado pintando-a com óleo de linhaça vendido naquelas panelas de ferro que a mãe haveria de esfregar com areia, a ponto de ficarem a brilhar ainda hoje? O óleo tornava a tela impermeável, mas pesava toneladas! Coitado do pai que o perdeu perto de S. Miguel d’Acha, quando voltava á terra na carroça para passar o Natal! Bem procurou se alguém o havia encontrado. Nem chus nem mus. Ninguém se acusou. Pois não! Não lhes custou um minuto de trabalho e despesas e caiu-lhe nos braços! Foi dádiva caída do céu!
Notas:
Alcambar – topónimo no sopé da serra da Malcata.
Capulo – peça de sola onde encaixava outra, juntando a mangueira ao mangual.
C’stantino – Constantino.
Dar-se com – envolver-se de amores com.
Defumeço – defumaço-pequeno vaso com brasas a pue se deitava açúcar, poejos ou malaguetas e se colocava à porta de alguém pelo Entrudo.
Eirinha – topónimo junto da estrada para o Sabugal, onde meu pai tinha uma vinha.
Galhada – galho de uma pernada de carvalho.
Liseu – Eliseu.
Loije – andar térreo para os animais
Majadoira – manjedoura
Pio – grande pia junto do fontenário para dar de beber aos animais.
Rascalheiro – alguém disfarçado e coberto com uma manta munido de um grande ramo de carvalho ou castanheiro, que saltava das esquinas e varria os passantes no Entrudo,
Rebusca-pés – pequeno rastilho com pólvora.
Rocanacó – jogo das escondidas.
(Final da parte 1 de 2. Continua).
Espectacular…lindo
Obrigado! Foi um relembrar da minha meninice do início dos felizes anos 40