Hoje proponho aos leitores do «Capeia Arraiana» um percurso por Lisboa com o objectivo de descobrir pormenores menos conhecidos e contar aquilo a que os franceses chamam a «petite histoire», isto é, pequenas histórias da História.
O local de partida para esta breve visita é uma das mais belas praças do mundo, a Praça do Comércio. Depois de apreciarmos a magnífica estátua equestre do rei D. José, da autoria de Machado de Castro, fixemos agora o olhar no Arco Triunfal da Rua Augusta.
Demorou mais de cem anos a ser concluído. Embora estivesse prevista nos planos pombalinos, a sua construção foi sendo sucessivamente adiada e apenas em 1875, no reinado de D. Luís (cujo brasão está bem destacado no centro do arco), se procedeu à inauguração. A arquitectura deste belo monumento é de Veríssimo da Costa e as esculturas são de Célestin Calmels e Vítor Bastos. O escultor francês representou, no topo, a Glória coroando o Génio e o Valor. Mais abaixo, Vítor Bastos (também autor da estátua de Luís de Camões, em Lisboa), representou (de pé, da esquerda para a direita) quatro grandes personalidades da História de Portugal: Viriato (admitindo, para não complicarmos este texto, que o famoso guerreiro lusitano é um «herói português»), Vasco da Gama, o marquês de Pombal e D. Nuno Álvares Pereira. As figuras reclinadas representam os rios Tejo (à esquerda) e Douro (à direita). A dedicatória, em latim (VIRTUTIBUS MAIORUM. UT SIT OMNIBUS DOCUMENTO. P.P.D.), em tradução relativamente livre, significa: «Às virtudes dos nossos antepassados, para que a todos sirva de exemplo.» P.P.D. não é propaganda política mas sim uma fórmula de origem romana: «Pecunia Publica Dedicat» («Construído com o Dinheiro do Povo, que o Dedica»).
Convido agora os leitores a recuar até 1850 e a dar um passeio pelo Chiado. Talvez se cruzem com Almeida Garrett, que morava na Rua do Alecrim, mas não ainda com Eça de Queirós, que então tinha apenas 5 anos e jogava ao berlinde na Póvoa de Varzim. Também não encontrariam a estátua do poeta António Ribeiro Chiado, que só foi lá colocada em 1925. Poeta jocoso e satírico, discípulo espiritual de Gil Vicente, está ali porque teve a sorte de se chamar António Ribeiro, o Chiado. Bem mais merecedor de uma estátua num local nobre da cidade era o próprio Gil Vicente, que «teve que se contentar» com uma em que poucos reparam, colocada no vértice do frontão do Teatro Nacional D. Maria II, no Rossio.
O que o leitor encontraria no Largo do Chiado era o Chafariz do Loreto, ou Chafariz de Neptuno, que foi demolido em 1853. Na imagem aqui reproduzida podemos observar uma gravura da época e, na fotografia, a belíssima escultura que coroava o fontanário, representando o deus dos mares, Neptuno, suportado por dois golfinhos e ostentando o seu tridente. Foi esculpida em mármore de Carrara e é atribuída a Machado de Castro. Esta estátua de Neptuno foi mais tarde reutilizada e podemos hoje admirá-la na fonte que se encontra no Largo de D. Estefânia.
Na gravura, por trás do chafariz, destaca-se o palácio Pinto Basto, pertencente ao industrial José Ferreira Pinto Basto, fundador da fábrica de cerâmica da Vista Alegre. Repare-se também nos aguadeiros que se aglomeram à volta do chafariz, alguns sentados nos barris em que transportavam água até às casas dos clientes. Muitos destes aguadeiros eram imigrantes galegos, que percorriam as ruas da cidade anunciando os seus serviços com o pregão «aú! aú!…» (do galego auga).
Descendo de novo até ao Rossio, aproximemo-nos da estátua de D. Pedro IV. Como sabemos, D. Pedro era o filho mais velho de D. João VI e de D. Carlota Joaquina e, em 1807, foi com os pais para o Brasil. Quando, depois da Revolução Liberal de 1820, a corte portuguesa foi convidada a regressar a Portugal, o príncipe herdeiro D. Pedro respondeu «Fico». E, em 1822, soltou o «grito do Ipiranga», proclamando a independência do Brasil e tornando-se assim o imperador D. Pedro I. Quando o pai morreu, em 1826, declarou-se herdeiro do trono português e outorgou ao país uma Carta Constitucional. Ao mesmo tempo, transmitiu os direitos de sucessão à filha, futura D. Maria II. Quem não esteve pelos ajustes foi o irmão, o absolutista D. Miguel, que se proclamou rei legítimo em 1828. Em 1832, D. Pedro abdica do trono brasileiro em favor do filho, D. Pedro II, e vem a Portugal combater o irmão. Com a vitória na Guerra Civil, em 1834, assegura a implantação definitiva da monarquia liberal, garante o lugar da filha no trono de Portugal, mas morre tuberculoso nesse mesmo ano.
Em 1870 foi inaugurada a sua estátua, no Rossio, resultante de uma encomenda feita ao escultor francês Elias Robert. Sobre uma alta e elegante coluna coríntia com fuste estriado, vemos a figura do Rei-Soldado, vitorioso na Guerra Civil e, por isso, coroado de louros. Uma lenda popular muito persistente diz que não é D. Pedro que ali está mas sim o arquiduque austríaco Maximiliano de Habsburgo, que a política europeia quis transformar em «imperador» do México, mas que foi fuzilado pelos revolucionários republicanos três anos depois de chegar ao país (o pintor Édouard Manet fixou numa magnífica tela o fuzilamento do malogrado «imperador» e de alguns dos seus generais). Conta a lenda que, então, como o escultor já teria preparada uma estátua para Maximiliano, após a sua morte resolveu aproveitá-la e adaptá-la (ou, segundo outra versão, a estátua até já se encontraria no porto de Lisboa, a caminho do México).
Já foi cabalmente demonstrada a falsidade desta lenda urbana: basta ver que D. Pedro segura na mão direita a Carta Constitucional de 1826, tem o colar da Torre e Espada e os botões da sua farda exibem os escudos das armas portuguesas. Ponto final.
Vamos concluir com a palmatória. Os leitores mais velhos sabem muito bem do que falo e alguns (como eu) levaram «bolos» com aquela que era também chamada «a menina dos cinco olhos». Mas não é sobre essa palmatória que vamos falar (aliás, numa das minhas crónicas neste blogue já tive oportunidade de falar abundantemente sobre este tema). Venham comigo ao Largo Trindade Coelho, onde se situa a Santa Casa da Misericórdia, e que em tempos se chamou Largo de São Roque. Depois da expulsão pombalina dos Jesuítas, a Santa Casa herdou as instalações da sede da Companhia de Jesus em Portugal. E a Igreja de São Roque, onde pregou o Padre António Vieira, ainda ali está, com as suas preciosidades artísticas, como a magnífica Capela de São João Baptista, oferecida por D. João V. Todavia, deixemos a igreja e olhemos para o Largo.
Os nossos olhos fixar-se-ão primeiro na estátua do Cauteleiro, figura típica do quotidiano lisboeta, e depois num monumento constituído por uma alta coluna encimada por uma dedicatória circular, envolvida por uma coroa de ramagens. Vista de longe, parece realmente aquilo que o povo lhe passou a chamar: a Palmatória. Trata-se de uma oferta da comunidade italiana que vivia em Lisboa, ali levantada em 1862, por ocasião do casamento do rei D. Luís com D. Maria Pia de Sabóia, filha de Vítor Emanuel II, o rei unificador da Itália, conhecido pelos italianos como «o Pai da Pátria».
De facto, aproximando-nos, vemos que a coluna, no capitel, tem um brasão com duas partições: uma com as armas nacionais portuguesas, outra com as armas da Casa de Sabóia. E conseguimos ler a inscrição, do lado nascente em português e do lado poente em italiano: «Pel fausto consorzio delle loro maestá il re Don Luigi di Portogallo e la principessa Maria Pia di Savoia adi 6 Ottobre 1862, nuovo pegno di frattellanza fra i due popoli. Gli italiani residenti in Lisbona eressero.» («Pelo fausto consórcio de Suas Majestades El-Rei D. Luiz de Portugal e a princesa Maria Pia de Sabóia, em 6 de Outubro de 1862, novo penhor de fraternidade entre os dois povos. Erigido pelos italianos residentes em Lisboa.»)
Para concluirmos este passeio por uma Lisboa vista com «outro olhar», regressemos ao Rossio, descendo as típicas escadinhas da Calçada do Duque, e brindemos com uma ginjinha (com elas), na Velha Tendinha celebrizada num fado de Hermínia Silva: «Junto ao Arco do Bandeira/ Há uma loja, a Tendinha,/ De aspecto rasca e banal./ Na história da bebedeira,/ Aquela casa velhinha/ É um padrão imortal./ Velha taberna,/ Nesta Lisboa moderna,/ És a tasca humilde e terna,/ Que mantém a tradição./ Velha Tendinha/ És o templo da pinguinha,/ Dos dois brancos, da ginjinha,/ Da boémia e do pifão.»
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«Na Raia da Memória», crónica de Adérito Tavares
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Dezembro de 2009.)
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Belo pedaço da nossa história que o Professor Adérito Tavares partilha connosco