Em todas as aldeias há pessoas cujas atitudes estranhas levam os demais a dizer que estão possessas do demónio. A Igreja Católica instituiu mesmo o cargo de Exorcista para expulsar o demónio dos possessos, seguindo o que Jesus fizera quando expulsou os demónios de pessoas e aqueles possuíram porcos que se afogaram. Eram conhecidos locais onde essa prática era conhecida, como junto da relíquia de Vera Cruz em Portel e os jornais noticiaram recentemente quem era o exorcista que está no activo.

Pois bem, em Quadrazais, no início do século vinte vivia no Alcambar um criado do ti Sono – o Zé da Meimoa – que, jovem, tinha atitudes estranhas, como subir para uma cumeeira e dela se dependurar pelos dedos gordos dos pés, dando cambalhotas e saltos que nem macaco. Conhecia toda a gente, com os olhos fechados…
Estava ele um dia a lavrar quando se lhe pousou no arado um passarito branco que começou a falar com ele. Pediu-lhe que fizesse alguns sacrifícios para a pessoa que incarnava poder ir «para um bom lugar».
Devia andar descalço e comer pão e água durante quarenta dias. Quem o possuiu era um espírito bom. Um dia ensinou-lhe como expulsá-lo de si e disse-lhe que iria ser padre, para espanto do Zé da Meimoa, que não sabia ler. O certo é que, um dia saíu de Quadrazais e ingressou numa congregação de missionários, tendo regressado já missionário a Quadrazais para visitar os antigos amos.
Comprou o livro que o espírito lhe indicou e pediu a um parente dos amos, o Manuel Pires Diz, residente em Vale de Espinho, que lho tirasse. O espírito bateu palmas ao sair do Zé e despediu-se.
Nos anos quarenta, o Quim Cabral, aos 12 ou 13 anos, quis entrar pela janela das traseiras de sua casa, que dava para o quintal do Carvalha, com um molho de rama de batateiras. Impediu-o a irmã Olinda, uns dois anos mais velha, alegando que lhe sujava a casa que ela acabara de lavar. Não desistiu ele do seu intento e depois insultou a irmã, chamando-lhe puta, coisa que jamais havia acontecido. Mais, atirou-lhe uma pedrada, que lhe acertou numa perna. Contou a Olinda o sucedido ao pai e este atirou-lhe com um arrocho, sem lhe acertar. O Quim deitou-se numa tábua na varanda, com risco de cair, Chamaram-no e ele não respondia. Começou a fazer espalhafatos. Veio o ti Zé Vinhas com o livro de São Cipriano e queimaram-lhe toda a roupa que vestia. A jogar à bola, ele ficava mudo e quieto. Levaram-no a uma benta a Valbom, indo também a Bajé do Mário.
A benta dirigiu-se à mãe do Quim: Vocês não trazem coisa boa! – Receitou-lhe a benta uns pós para afugentar o demónio, os quais deviam ser deitados em água corrente. Assim fizeram, mas os pós empancaram nos juncos e não seguiram a corrente, pelo que não produziram efeito.
No munho subia para a culmeeira. Fugia da mãe, atravessando a ribeira. Quando a mãe desistiu de o procurar, ele regressou e espojou-se num terreno com milho. A mãe batia-lhe e ele respondia: «Bate, bate, que a mim não me dói.» Quando o demónio passava para a barriga do Quim, esta inchava. Ele dizia que via «um que tem cornos e é vermelho». Quando o demo, já farto do Quim, quis sair, disse-lhe o que tinha a fazer: deitar uns pós na corrente, o mesmo que lhe havia receitado a benta de Valbom. Assim fizeram e o Quim ficou bom.
Um dia foi ao munho do Sr. Nacleto, ao Covão, onde o pai era moleiro. O avô, já mouco, encontrava-se numa divisão. O Quim, com 15 anos, foi dar seveira para fechar e o pão não cair. As correias estavam ligadas ao rodízio. O Quim vestia uma camisa nova. Ao meter a mão, a correia apanhou-o pela camisa e afogou-o nas goelas. Porque a camisa era nova, não rasgou. O avô, ao vê-lo dependurado, em vez de tentar cortar a correia, veio ao povo dar o alarme. Seguiram a cavalo o pai e outras pessoas. O Quim ainda chegou vivo ao povo, onde o Sr. António Salada lhe deu uma injecção, mas de nada valeu.
Com 13 anos foi do povo para o munho a pôr a mula e a égua apeadas no lameiro e representa-se-lhe a avó Ginja (da parte do pai) a pedir que pagassem um galo ao Santíssimo Sacramento, promessa que ficara por cumprir. Contou ao pai o que sucedera, mas este não acreditou e não ligou. Entrou-lhe então o diabo. Só mais tarde a mãe cumpriu a promessa.
Nos anos cinquenta era o Lívio que apresentava perturbações, depois de sair da cadeia pela morte do Ireneu. Dizia-se que era a madrinha, mulher do pai do Tozinho Sapateiro que o apoquentava. Um dia ia a caminho de Espanha com outros quadrazenhos, entre os quais o Augusto da Costa e, parando, começou aos gritos. Os colegas tiveram dificuldade em o acalmar. Lembro-me que ficava lívido e o levavam de capela em capela onde rezavam e não sei se lhe faziam mais algumas mesinhas. Tampouco sei se, após ir para França, tudo acabou. Com a sua morte, então sim, tudo acabou.
Dessa esquizofrenia, ou lá que fosse, sofria a Bazaliza, a quem tinham morrido duas filhas pequenas e que dava sinais de doidice, já hereditária. Metia-se ao fundo da igreja nos terços e o padre Correia tinha de a expulsar no fim da cerimónia, já que não queria sair.
Já o abade de Quadrazais Manuel Pereira, em 1595, conta casos semelhantes.
Notas
Bazaliza – Basilissa.
Munho – moinho.
Culmeeira – cumeeira;trave que sustenta o telhado.
Nacleto – Anacleto.
Seveira – apertar uma peça do moinho.
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