Trago-lhe reflexos de mentalidades novas e de novos hábitos: a emigração no seu melhor, quando, parada a faina e a labuta incessante lá para os arredores de Paris, os emigrantes chegavam à terra e o ambiente se modificava a vários títulos… Tal como hoje: só que agora já ninguém estranha.
Hoje como ontem, as férias são o tempo de reencontro. Uns vão de Lisboa, outros de Paris. A vida era complicada lá para as estranjas, de facto. Mas o amor à terra levava-os a todos ou a quase todos a fazerem os quase 2 mil km que os separavam da mulher e dos filhos.
Nessa altura era estranha a mudança a que agora já toda a gente se habituou: pessoas sem fazer nada, o dia todo a conviver e a conversar, palavras esquisitas no ar, carros diferentes numa aldeia onde havia apenas meia dúzia de viaturas…
A «voáture, a «càtrèle» e a «mesom»
Escrevo à portuguesa, porque sei de certeza que ninguém imaginava qual a grafia em francês: voiture, maison…
Mas sobretudo as càtrèles… (já explico).
Mas há que reconhecer que muitas palavras eram mais ou menos bem pronunciadas.
De repente, nas férias, as ruas enchiam-se de Peugeots, Citröens, mas sobretudo de Renaults.
Os Citröens eram alguns bonitos 2 cavalos – melhor: deux chevaux…
Mas o mais frequente seria talvez aquele modelo da Renault, a 4 L.
Designação essa que na minha terra foi sempre baptizada pelos emigrantes como a càtrèle: «A minha càtrèle para cá, a minha càtrèle para lá…».
E as matrículas que até indicavam qual o departamento (zona) de onde vinham os donos: o 75 é Paris, outros noventas são os arredores, o 31 é… Toulouse, relativamente perto da cidade de Pau (um desses carros vinha mesmo de lá).
Achei sempre imensa piada a estas palavras – fosse ali no Largo de São Francisco, fosse nas ruas da terra…
Bonjour, ça va? – esta passou depressa a ser uma forma de saudação na minha terra nas férias.
Tchampinhí
As pessoas que sempre ficaram no Casteleiro ouviram tantas vezes a palavra Champigny (cidade dos arredores de Paris onde muita gente da Casteleiro vivia em habitações de duvidoso conforto naquele tempo…), tantas vezes ouviram essa palavra que, sem saberem bem a que é que ela se referia, acabaram por adoptá-la e, como sempre faz o Povo, aletraram a palavra para a pronunciarem à sua maneira e acabaram por fabricar algo entre um substantivo comum e um adjectivo… e, quando se referiam a alguns emigrantes, diziam assim:
– É um tchampinhí.
Isso era uma referência à qualidade de emigrante na França, mas incluía naturalmente também alguma crítica sobretudo a dois aspectos que naquele tempo eram muito salientes na minha aldeia: repentino menosprezo pela aldeia e pelos seus valores mas também algum exibicionismo de dinheiro de bolso.
Nada que não acontecesse nas outras aldeias. Nada que não tenha acontecido com movimentos migratórios históricos noutros pontos do País.
Afinal, a minha aldeia nada tem de novo nestas e noutras matérias: é apenas mais uma. Uma terra igual a todas as outras…
Michel, tu vas tomber
(Deve ler o título em francês – pois é mesmo francês e correctíssimo: já explico por que é que recomendo esta leitura correcta).
A língua francesa foi adoptada pelos emigrantes pois lá, nas terras distantes, ou falavam francês (arranhavam, claro) ou eram ainda mais ostracizados pelos naturais de lá.
É famosa a atitude altaneira de muitos dos cidadãos franceses daqueles tempos em relação aos emigrantes que tanto lhes desenvolviam a economia nacional e que tantas tarefas desempenhavam sobretudo daquelas que eles rejeitavam…
Se os nossos compatriotas não fizessem mais esse esforço de integração que era terem de se desenrascar em francês mesmo que macarrónico, pior seriam tratados: mais isolados estariam, claro.
Sabido ou recordado isto, vamos então a uma história concreta bem indicadora desses novos hábitos.
Uma das coisas que mais incomodava quem nunca tinha saído da terra para as estranjas era que no Casteleiro se falasse francês (se é que aquilo era francês). Hoje, é normal, mas quando foi no início do fenómeno, era muito estranho.
Quando a segunda geração (os filhos da primeira leva) foi para a França e começou a ter filhos, estes (os netos) já nem aprendiam português: andavam lá na escola e em casa os pais falavam francês – já mais ou menos correcto.
Pois bem: a primeira geração, os avós, dos pequenos que vinham ver a terra de origem da família, os avós, repito, não fugiam à regra: falavam francês com os netos que brincavam na rua.
A história conta-se em poucas linhas, mas é o paradigma de uma determinada nova situação, que a aldeia continuava a estranhar.
A criança brincava aos saltos e a coisa pareceu perigosa à avó, que lhe começa a dizer primeiro baixinho:
– Michel, tu vas tomber.
Depois, cada vez mais alto, repetia:
– Michel, faz atenção. Tu vas tomber…
Mas o miúdo não queria saber do recado da avó, continuava aos saltos e de repente, claro… caíu mesmo e aleijou-se. Comentário imediato da avó:
– Ai o filho da puta do garoto. Atão num é que caiu mesmo????
Aí, a língua materna veio ao de cima pela força das emoções…
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«A Minha Aldeia», crónica de José Carlos Mendes
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Janeiro de 2011)
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