Existiu, sim, o meu reino encantado. E não se tratou, apenas, de um qualquer conto de fadas porque o meu reino foi muito mais que isso. Chega-me, agora, sob forma de lembrança fazendo-me recordar a infância, avivando-me saudades. Guardo esse memorial como se de um pequeno tesouro se tratasse.
Sabe, quem melhor me conhece, que não sou muito de memorizar mas, quando se trata de memórias de infância, elas surgem-me frescas e perfeitas.
A minha meninice foi desprovida de tecnologia. Os rádios eram raros e as televisões ainda eram mais escassas. Não havia telemóveis ou tabletes nem a maioria das modernices que hoje prendem os miúdos ao sofá.
São muito diferentes os divertimentos das crianças de hoje.
Caíram em desuso os jogos do meu tempo. Nem todos se lembram já do jogo do pião, da chona, do salte deixe e tantos outros que contribuíram para a minha felicidade infantil.
Na minha infância havia mais pássaros que fadas e havia o amanhecer e o pôr do sol desenhados no cimo dos montes a repassar a copa das árvores. Havia os sussurros das ramagens, o som das águas a escorregar no ribeiro cercado de um verde muito verde que o inverno revalidava e o verão tentava aloirar. Havia bandos saltitantes de garotos que, lançando pedras, ensaiavam pontarias ou tentavam distâncias sobre as árvores.
A mim acompanhava-me, quase sempre, um cão chamado Boneco, especial amigo da minha infância. Quantas estórias ele me ouviu, quantos segredos ele me guardou! Se fosse vivo e pudesse narrar também o Boneco contaria muitas estórias.
Um dos meus maiores encantos era a chuva nocturna. Em noites chuvosas quase não dormia. Ficava escutando a tempestade enquanto aguardava pelo amanhecer para ver quanto subiria a ribeira ou se ela teria mesmo transbordado o seu leito. Por vezes, de manhã, a água tinha-se tornado sonora, volumosa e castanha sobrepondo-se às velhas poldras.
De quando em quando chegava a isolar a aldeia submergindo a pequena ponte e o caminho. Essas inundações eram entendidas como grandes inconveniências por parte dos adultos mas eram, para mim, um puro encanto.
O tempo passou numa pressa subtil. Muitos momentos se perderam no esquecimento. Mas houve alguns que perduraram na memória e, nela, ficarão para sempre.
Hoje vive-se uma nova era. O tempo presente é de tecnologias que desafiam raciocínios. Já não será tanto o nosso tempo quanto é o tempo dos nossos filhos. Talvez no futuro o tempo que por ora vivemos se venha, também, a tornar lembrança. Uma lembrança que os nossos filhos recordarão. É natural que assim seja porque é assim o ciclo normal do tempo.
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«Terras do Jarmelo», crónica de Fernando Capelo
(Cronista no Capeia Arraiana desde Maio de 2011)
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Amigo Capelo:
Essa palavra tão doce / De tanta suavidade /Que me faz chorar de dor / quando a murmuro:
é saudade.
Florbela Espanca
Adeus amigo Capelo