Meu quinto e ainda familiar, éramos colegas inseparáveis nas brincadeiras. Na sua loije pendurávamos uns laços à culmieirê e vá de nos balançarmos, ora um, ora outro, ora os dois ao mesmo tempo, com uma cambalhota de vez em quando. Eram as nossas comédias, imitando algum comediante que por lá passava de quando em quando.

Andávamos aí pelos seis anos, minha mãe mandou-me ir guardar a burra, ou o macho, no lameiro das Negrinhas. O Zé Manel Sono foi comigo, claro. Para onde ia o pião, ia a baraça.
Cortámos umas varinhas de sanguinho ali junto do rio e, usando as nossas inseparáveis navalhinhas, toca a desenhá-las, cortando-lhes a casca obliquamente, deixando uma fila branca sem casca e outra verde com casca. Fomos procurar amoras trigais, ali abundantes, que deitavam muito sumo vermelho e toca a untar a fila branca. As mãos não era preciso pintá-las, pois ficavam pintadas automaticamente. E, já agora, por que não pintar também a testa e a cara para parecermos uns índios?
E que índios! Parecia que tínhamos partido as cabeças, donde jorrava sangue bem vermelhinho.
À tardinha pegámos na burra, saltámos-lhe para o lombo em pêlo e vá de picá-lo para casa. Ao chegarmos ao Vale, o Renato e uns tantos já grandotes começam a espantar a burra e lá malhámos com os costados no chão. Nada de grave.
Estávamos já a chegar a minha casa. Junto dela estava a irmã do Zé Manel, a Chão, ou a Maria. Ao ver-nos com a cara vermelha de sangue, convenceu-se que havíamos feito uma brecha na cabeça e começa aos gritos:
– Ah! ladrão! E toma! – Duas laposas na cara do Zé Manel. Era o remédio para curar as brechas, que ninguém o mandou meter-se em alhadas.
Só depois se apercebeu que se tratava de pintura, mas aquelas já ninguém lhas tirava e muita sorte não ter levado mais outro par, que ninguém o mandou pintar a cara.
Não apanhou das irmãs, mas levou umas ferroadas das abelhas, tal como eu, quando nos lembrámos de meter a mão num tronco de castanheiro às Casinhas para tirar mel. Em vez de mel sai de lá um batalhão de abelhas que nos picam na cabeça, cara e mãos.
Cara nos ficou a gulodice! Com uma navalhinha conseguimos tirar alguns ferrões, mas outros inchaços perduraram.
Inseparáveis nas horas de alegria e de tristeza. No dia em que morreu o irmão Tózinho, com uns três anos, um anjinho, lá fomos os dois à Cova e à Lavandeira procurar hera para lhe colocar no caixão.
Chega a idade da escola e lá íamos juntos até ao São Sebastião, de casaquinha, ou aí nos encontrávamos, que eu tinha mudado de casa para o Santo António e era mais difícil combinar a hora.
Acabada a quarta classe, com algumas lambadas do professor Evaristo, bom professor, mas que não pedia licença para pregar duas lambadas ou reguadas por erros de ditado ou falhas ao quadro, fomos ambos para o Seminário, ele para o Tortosendo e eu para Vila Viçosa.
De vez em quando passava um padre lá pela aldeia e escolhia uns tantos para levar consigo, com o agrado dos pais, que viam o seu menino a continuar os estudos que, de outra forma, quem sabe se continuariam!
Um padre alemão da congregação do Verbo Divino arrebanhou o Antero, o Ildefonso, o Zé Manel, o Távio, o Jaime Birrão, O Cuco, o Tonho Manel, o Gustavo e o Julinho.
Ao Padre Manso, de Aldeia do Bispo, e ao Padre Lourenço Chorão, de Aldeia da Ponte, que eram padres na arquidiocese de Évora, tocaram o meu irmão, meu primo Quim, o Simão Constantino, o Borrega, eu, o Manel d’Alice, o Tó Barbeiro e, mais tarde, o filho do Ernesto. Para os Carvalhos, no Porto, rumaram os três irmãos Pires Diz, seguindo as pisadas dos irmãos Elísio e Tomé Baldinho.
Até em Beja houve meninos quadrazenhos a desembarcar: o Zé Jaquim Diz, o Zé Ferro e o filho do Candajo. Não era grande o desterro, que os pais de muitos deles eram ambulantes no Alentejo Alto e Baixo.
Para o Fundão sobraram o Oliveira, o João Baldo, o Severino, o Tozinho Papo Seco e irmão Orlindo, e o Zé Sapateiro.
Encontrávamo-nos nas férias na aldeia. Era um matar de saudades e um infindável contar do que passávamos em cada uma das casas.
Constituíamos um grupo à parte, que não dizia palavrões, substituídos por «caneco», embora admitíssemos no grupo alguns não seminaristas, como o Tó Cruz, o Feliciano, o Tó Ranhau e o Tó Calheta. Jogávamos a bola no campo dos padres, isto é, num terreno por detrás do cemitério com uns castanheiros, depois de termos varrido os ouriços, e jogávamos ao sete e meio e sueca no nosso cabanal, constituindo duas ou três mesas, tal era a afluência de jogadores. E o empenho era tal que esquecíamos recados que os pais nos tinham mandado fazer. Aconteceu isso com o Oliveira.
A mãe tinha-o mandado levar um saco de enxofre ao ti Manel da Pinheira, contratado para deitar enxofre na vinha à Eirinha. Passa o Oliveira na estrada junto do nosso portão. Vê a malta.
– Quem está a ganhar?
– Vá, anda jogar um joguinho!
– Tenho pressa!
– Mas é só um.
Não resistiu ao chamamento. Passa uma hora, passam duas. O homem já tinha esgotado o enxofre e manda recado que lhe levassem mais. A mãe do Oliveira deita as mãos à cabeça:
– Onde se terá metido aquele ladrão?! Há duas horas que saiu d’ó pé de mim! Será que lhe aconteceu alguma coisa? Terá levado algum coice da burra e está p’rá i caído numa valeta?
Mete-se a mulher ao caminho. Dá com a burra presa ao nosso portão com o saco do enxofre no lombo.
– Ah! ladrão! Então mandei-te levar o enxofre ao homem e tu no jogo! Cria a mãe um filho para lhe sair um desavergonhado!
Ah! pernas, para que vos quero! Salta o Oliveira para cima da burra e toca a picá-la. A mãe que grite. Pode ser que se livre de alguma sova com o acalmar da mãe, passadas umas horas.
Mas não era só brincadeira a vida do seminarista em férias. Às seis da manhã já ia a caminho da igreja para a missa diária. Acabada a missa, julgas que vais para casa? Não, o padre Correia vai arranjar-te um servicinho.
Toca a fazer a meditação! De Manual de Meditações na mão, por baixo da imagem da Senhora do Perpétuo Socorro, onde havia um belo banco verde, agora junto ao altar, cada dia lia um de nós um texto da Bíblia, de algum apóstolo ou santo digno de ser meditado. Chega a vez do Zé Manel Sono. Folheia o manual e fixa-se num título: O Melindre. Uma risada. Leu e provocou risadas constantes, sempre com o olho de soslaio, não aparecesse o padre Correia.
Nos outros dias ele sugeria sempre o Melindre. Melindre ficou de alcunha entre nós.
Mas não nos fazia rir apenas com a leitura do Melindre. Tinha ele uma irmã – a Bajé – que tinha sido pedida pelo rapaz com quem veio a casar. Era de fartar a rir ouvi-lo contar como o rapaz tinha pedido autorização aos pais para poder namorar a Bajé! Era assim em Quadrazais. Namorar, só à noite em casa da rapariga, depois de ter sido feito o pedido, isto é, a permissão para namorar.
Com vocação ou falta dela, um a um fomos saindo dos seminários. Só o Zé Diz chegou a padre. Eu fui para Lisboa, onde já se encontrava meu irmão. Meu primo Quim ficou-se por Évora, este para aqui, aquele para acolá e perdemos o rasto uns aos outros.
Do Cuco soube que, vindo um dia de bicicleta do Sabugal, lhe salta um cão às Peladas e, o sem vergonha, prega-lhe uma dentada nos lugares pudibundos e põe-lhe os boguelhos a cair. Pedala à pressa o Cuco para chegar a casa. Vê-o lastimoso o ti Mândio Baldo. Pega este numa agulha, nem sei se a desinfectou, e linha e vá de coser os boguelhos do Cuco, que quem arranja paredes, também conserta tomates.
Pensam que ficou castrado? Desiludam-se. Duas filhas, junto de quem vive em Aveiro, são a prova do contrário.
Fui encontrar o Melindre um dia em Paris, estava ele já para casar com uma espanhola de Saragoça. Para lá foi viver, proprietário de um café. Agora, já livre do café, vem uns dias em Agosto à terra matar saudades e meter uns bons golos de cerveja ou vinho, não vá ele esquecer o sabor do que é português.
Os outros, O Virgílio no Brasil, o Tomé ingressado na Legião Estrangeira em França, uns em Lisboa e arredores, outros por aqui e por ali, todos deixaram a terra. Restam nela o Távio e o Julinho, já regressados de França.
Um dos que vive em Lisboa é o Jaime. Numa das férias, o martelão, deu uma cabeçada na porta dum palheiro e conseguiu rebentá-la.
Alguns regressaram à terra mas para nela repousarem o sono eterno, como foi o caso do Tózinho Papo Seco, que chegou a tenente coronel páraquedista, mas que morreu cedo por doença incurável, do Zé Sapateiro, falecido em 2013, do Simão Diz em Outubro de 2014, após doença prolongada que o diminuiu mentalmente e de meu primo Quim Braga, que faleceu em Évora em Fevereiro de 2016. O Elísio, descontente com a vida, foi perdê-la de moto próprio num castanheiro da sua terra, junto da casa que aí construíra, embora fosse repousar para o Porto, onde vivia a filha.
Notas:
Bajé – Maria José.
Boguelho – bogalho, testículo.
Chão – Conceição ou Anunciação.
Culmieirê – tronco de carvalho que segura o soalho da casa.
I – aí.
Laposas – bofetadas.
Loije – baixos da casa.
Mândio – Amândio.
Ó – ao.
Távio – Octávio.
Leave a Reply