Um poema de Alcínio dedicado ao saboroso bucho. Da confecção da iguaria gastronómica raiana e do seu paladar, Alcínio parte em viagem de saudade à procura das origens sentimentais, do tempo em que na aldeia se ouviam chocalhos a tilintar, rebanhos a passar, porcos a grunhir ou cabras a berrar.
Meu bucho rosado
Que vens de longe, tão longe
Que venceste o tempo ainda ignorado
teu corpo arredondado é um livro sagrado
As tuas entranhas páginas escritas com sangue derramado
Pedaços suculentos selecionados dum corpo retalhado
Meu livro de memórias do passado
Tesouro de segredos não desvendado
Conheces o mundo que coabitou a meu lado
Os teus odores e sabores são um mundo encantado
Quantos segredos e sonhos por ti escutados e
Enquanto o teu ventre era depurado pelo lume brando e enfumarado
manjar de reis de ricos de pobres menos afortunados
Para desfrutar o teu denso paladar
Muitos tormentos tiveste que passar
Nas tuas vísceras trazem iguarias imortais
Porque carregam recordações dos pais e pais dos nossos pais
E de todos os nossos ancestrais
Alimento corporal és alimento espiritual
As tuas iguarias são força substancial
Fala nos de como era o mundo
Que ouviste crianças chorar, carros de bois com eixos a chiar,
Chocalhos a tilintar, rebanhos a passar, porcos a grunhir ou cabras a berrar.
Hoje o meu espírito inquieto com o murmúrio do silêncio a passar.
Que importa este este mundo ser mundo
Se eu não sinto o outro a passar
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«Vivências a Cor», expressão de Alcínio Vicente
Já admirava o (Alcino era como o conhecia) Alcínio como pintor, mas agora, conhecendo-lhe esta veia poética, que me encanta, presto homenagem à sua sensibilidade para as coisas belas da vida.