No início dos anos trinta nasce Carlos Alberto Lareia, cujo pai, o Zé Lareia, mantinha algumas características do Lareia de que se fala em Maria Mim. Como os outros quadrazenhos, por sustento no Inverno tinham feijões, castanhas e alguma hortaliça e batatas com que alimentavam também o porquinho. Este haveria de dar umas gorduras que transformariam em alinho e produtos para acompanhamento.

Uma fatia de carne gorda sobre o pão escuro, não só lhe dava a cor do trigo, produto de festas, como acrescentava as gorduras capazes de suportar o acre frio de Inverno. Para além do luxo das chouriças, peguilho especial com que serviam algum amigo ou familiar que os visitava e que recebiam com os carinhos habituais, acompanhados de um bom copito.
No dia da matança até dava para presentear amigos com a massa do farrenheiro, petisco apreciado por muitos, a avaliar pela resposta dada a terceiro que comentava a conversa de outrem que presenteara aquela com os crostos, e teve como resposta:
– Não fez favor nenhum. Lá lhe mandei a massa do farrenheiro.
Para comprar a roupa, sapatos e outras necessidades muitos passavam as noites a caminho da raia, levando o carrego com uns 20 quilos de café e trazendo outros vinte quilos de sedas, colchas, roupa interior de mulher, pana e outros artigos, por conta própria ou alugados por terceiros, que levariam esses produtos de contrabando pata Coimbra, Covilhã, Viseu, Porto ou mesmo Lisboa.
O Zé Lareia era um desses. Tão depressa o víamos agarrado aos cambos a tirar a água dum poço com que a mulher regava as batatas e hortaliças, como, à tardinha, sobretudo no Inverno, o víamos de manta felpuda às costas, vendida pelo Campainhas no mercado de Quadrazais, de alpergatas calçadas, pronto para umas corridas pela serra, fugindo aos guardas, actividade recompensada por um salário que era o dobro dos magros vinte escudos por que alugava o corpo por um dia de trabalho no campo a quem o chamava. Era a necessidade.
O Alberto, já crescidote, que das letras não quis saber, começou a acompanhar o pai nessas andanças, primeiro com um carrego mais leve, mas, à medida que o corpo ia tomando formas de homem, carregava tanto ou mais que o pai. E a natureza não lhe poupou na altura nem na largura dos costados, embora o tenha presenteado com uma pitada de gaguez e outra de uma pancadita.
Um dia, já as pernas arquejavam carregadas com uns quinze quilómetros já palmilhados. Descansaram um pouco. Já o pai se aprontava para recomeçar a caminhada, quando o Alberto lhe brada:
– Eh, pai! E cagar?!
Lá fez o Alberto o serviço e de novo se puseram a caminho.
Nesse caminho seguia um carro de vacas carregado de sacos de batatas, com o dono destas a acompanhar a jeira. De repente este bota a mão ao carrego do Zé Lareia e grita:
– Este é meu!
Ouviu o Alberto as palavras do paisano e deu resposta imediata.
– Teu?!
E sai-lhe de imediato da mão direita, qual seta, um lancho que apanhara do chão que vai direitinho à cabeça do atrevido, caindo como morto. Pai e filho continuaram o seu caminho, sem que alguém mais ousasse detê-los.
Alguém reconheceu o Zé Lareia e o Alberto, passados uns tempos, sentou-se no banco dos réus no Sabugal. Interrogou-o o juiz se fora ele que atirara a pedrada à cabeça do guarda e por que o fizera. Respondeu o Alberto:
– Sr. Dr. Juíz, atão se esse gajo deitasse a mão ao carrego de sê pai, o que é que vossemecê fazia? Ó no sabe atirar uma lanchada?
Notou o juiz que algo não funcionava bem na cabeça do Alberto e, receoso que algum dia deparasse com aquela mão certeira, arengou-lhe uma prédica e mandou-o em paz para casa.
É que o Alberto, que já guardara cabras desde muito novo, treinara-se a atirar chinas às pernas dos chibos que dele se afastavam, a ponto de não falhar uma. O resultado era trazer no rebanho uma série de animais a coxear.
Pedra que saía de suas mãos era um tiro certeiro. Que o diga a ti Maria do Ginjo! Andava ela a regar um chão para os lados do Soito Concelho ao lado de outro pertença do Zé Lareia. Chega o Alberto e entendeu que já era tempo de mudar o tornadoiro para o seu terreno. Ela, se não tinha acabado de regar, que o tivesse feito mais rápido. Barafusta a Maria do Ginjo que ainda lhe faltava muito e que aquilo não se fazia. E vá de mudar de novo o tornadoiro.
Ai é! Então não aceita que o Alberto regue as suas batatas? Que ainda tinha tempo, e que isto e que aquilo…
De novo o Alberto, já com o sobrolho irritado, muda o tornadoiro.
Prepara-se a Maria do Ginjo para o mudar de novo. Mas não tem tempo para tal. Já da mão direita do Alberto saíra a pedra que, qual tiro, lhe põe um braço ao peito. Novamente se vê o Alberto como cliente do juiz do Sabugal. O resultado da audiência vai ser o mesmo que da primeira vez em que se sentara no banco.
– Não se metam com ele, já que é inimputável.
O Alberto já tinha afinado a pontaria noutra vez em que o primo Liseu andara à bulha com outro rapaz à Fonte e que tinha enganchado o Liseu.
O Alberto pega dum rebolo e zás! As costas do contendor do Liseu que contem o que lhes aconteceu. Largou logo o Liseu. Meter-se com o Alberto?! Tá quieto, que as pedradas doem muito!
Bem se treinava a canalha a atirar pedras de todas as maneiras e feitios, incluindo sem-semão e a fazer putas na Ribeirê. Mas pontaria como a do Alberto nunca a atingiriam!
O pai Zé Lareia caiu um dia num poço ao Covão e lá se foi. A vez também chegou ao Alberto há meia dúzia de anos, que a ceifadora a todos ceifa.
Notas:
Alinho – tempero.
Atão – então.
Cambo – paus da picota para tirar água.
Chão – terreno de cultivo.
China – pedra pequena e espalmada.
Crostos – colostro.
Farrenheiro – farinheira.
Fazer putas – o mesmo que capar a ribeira.
Lanchada – pedrada.
Lancho – pedra de média dimensão.
Liseu – Eliseu.
No – não.
Ó – ou.
Pana – veludo espanhol para calças e casacos.
Peguilho – conduto que acompanha o pão.
Sê – seu.
Sem-semão – modo de atirar chinas batendo com a mão na anca.
Tornadoiro – desvio da água nas regas.
Muito caro Franklim: o rabo do arado chamavamos-lhe a rabiça ,o cambâo era um pau comprido que se ligava ao timoeiro(tamoiro) o tamoiro era um objeto em couro dobrado sobre a canga, à extremidade do cambão fixava-se entâo a grade para gradear a terra. Grande abraço , prezado conterrâneo
Obrigado, Simão. Já me vão esquecendo algumas coisas. Mas sabia que era algo que se sustentava no tamoiro, como a rabiça do arado. Daí a confusão. Porém, no meu livro Quadrazais -Etnografia e Linguagem vem lá tudo correcto.
Excelente!
O meu bem-haja pela facilidade em contar estas estórias que nos transportam na forma de retrato escrito à realidade do passado.
Na minha aldeia ao cambo também damos o nome de cambão. Acho eu…
Aquele abraço raiano,
Olá, José Carlos Lage,
Obrigado pelo comentário elogioso.
Em Quadrazais, cambão é outra coisa. Creio que é o rabo do arado.
Um abraço
Franklim
Pelo guarda fiscal cumpriu o Alberto pena de prisão no Porto e no Sabugal. Um abraço para ti
Olá, Simão,
Obrigado pelos acréscimos. Há pormenores que eu desconheço, tanto mais que saí de Quadrazais por essa altura. Um abraço para ti também.