Muitos quadrazenhos tinham pistola. Os ambulantes, que andavam de noite por esse Alentejo nas suas carroças, precisavam de ter uma arma para o que desse e viesse, não fossem salteadores atacarem-nos nas estradas e eles sem defesa.

Obtinham facilmente licença de uso e porte de arma e compravam a sua pistola, que experimentavam na noite de passagem do Ano Velho para o Ano Novo, à meia-noite, como era tradição, num tiroteio respondido por muitos outros.
Se tivessem as pistolas consigo na noite em que foram atacados numa ponte na Lixa, quando passeavam, após terem apartado a fazenda que queriam nas fábricas daquela terra e em Guimarães e terem ceado na estalagem onde iriam ficar nessa noite, não teria sido necessário ter acudido aos seus gritos o estalajadeiro que, com um facalhão, conseguiu afugentar os meliantes! Se não fora ele, o Nascemento jazeria lá no fundo do rio, que já se aprestavam para isso. Com a intervenção do estalajadeiro e com o Sedas, o mais forte, a soltar-se dos meliantes e a ajudar meu pai a soltar-se também, conseguiram regressar sãos e salvos à estalagem.
Mas havia muita gente que teria dificuldade em justificar o uso de uma pistola.
Porém, o quadrazenho nunca deixou de atingir os seus objectivos, legal ou ilegalmente.
Era preciso enfrentar a Guarda. Se ela atirava a tiro, o quadrazenho tinha o direito de se defender a tiro. Se os guardas cercavam a povoação e tiravam o contrabando, os quadrazenhos tentariam retirar-lhes o contrabando a tiro. Que o digam o Zé Borrega, a ti Alzira e outros! Sim, que algumas mulheres, quais Marias da Fonte, eram tesas e também usavam pistola!
Licença para quê? Bastava ir ao Tó Frade e comprar uma pistola. Ele não as fabricava nem as roubava, mas tinha-as de diversas marcas. A origem deveria ser a Espanha ou os ciganos, estes sim que as roubavam.
E balas? Também se arranjavam, já que mais não fosse, comprando-as aos que tinham pistola com licença e que tinham direito a comprar legalmente duas caixas de balas por ano. Cediam uma ao Tó Frade, que a pagava bem, cujo produto ajudava no pagamento da licença, e assim o Tó Frade já tinha mercadoria para vender aos sem licença.
O pior era quando os legais iam comprar novas caixas e tinham de justificar onde haviam gasto as balas anteriores.
– Foi a atirar contra um sobreiro no Alentejo, num despique quando nos encontrámos vários ambulantes na mesma localidade, a ver quem tinha melhor pontaria.
– Unh!
– É verdade, pode ir ver o sobreiro em tal parte.
A autoridade lá comia a desculpa!
– Foi a atirar aos javalis, que há muitos lá na terra!
– Unh! – rosnava a autoridade. – Deixe lá os javalis em paz!
– Só na noite da passagem de ano gastei umas dez balas!
– Tantas? – atalhava o fiscal.
– Ou até mais!
E lá ia tendo o Tó Frade o seu stock de munições.
Por haver tanta pistola, de vez em quando dava-se uma tragédia.
Aconteceu em casa do Tó Ferro, quando miúdo. O pai tinha uma pistola, que, inadvertidamente, deixou carregada em casa. O Tó descobre-a e começa a brincar com ela conjuntamente com outros miúdos amigos. Às tantas, a pistola dispara-se e lá foi um filho do Augusto Restelo para a outra vida.
Por ter consigo a pistola, certa noite o Tó Panto mandou para o outro mundo o João Lucas, com quem já tinha pegas e que, naquela noite, ao passar-lhe à porta, se mete com o Tó Panto e este dispara. Apesar de boa parte do povo se ter posto ao lado do Tó, mesmo no tribunal, abonando o seu bom comportamento, ao contrário do do João, sempre metido em barulhos, a sentença foi de prisão, que teve de cumprir, embora como condutor de camionetas, pelo que vinha à terra de vez em quando.
Por ter a pistola à cintura aconteceu a desgraça ao D. B., que matou dois polícias, colegas de profissão, em Lisboa. O D. até era boa pessoa e não consta que, em Quadrazais, se tivesse metido nalgum barulho. O diabo do contrabando deitou tudo a perder. Descobriram os seus colegas que tinha contrabando consigo.
Esperava-o a prisão e a saída da Polícia. Num repente, dispara a arma e lá vão dois cheirar o contrabando no outro mundo.
Morto o Tó Frade, onde arranjarão agora pistolas os quadrazenhos?
As dificuldades em obter licença são agora ainda maiores. Mas, o contrabando acabou. Já não é preciso defenderem-se dos guardas.
A ambulância acabou. Já não é preciso defenderem-se de salteadores.
Homens em Quadrazais há poucos, que a emigração a todos levou.
Para se defenderem em barulhos?
Barulhos já não há, que os motivos que os geravam – a falta de instrução e a miséria – desapareceram ou estão em vias disso.
Para quê pistolas se, até às legalmente herdadas, é um castigo dar-lhes destino!
Armeiros não as compram. Terceiros, têm de ter licença, difícil de obter…
Só resta passar de pais a filhos, pagando licença de detenção, ou entregá-las à Polícia, sem dela nada receberem.
Tudo é feito de mudança, como dizia Sá de Miranda no século XVI!
Notas:
Apartar – comprar.
Nascemento – Nascimento.
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