Habituados a não levar nada, para além do dinheiro para pagar aos détores, muitos quadrazenhos esqueciam o álcool e o algodão em rama, que isso de algodão hidrófilo era linguagem de détores. A Intioneta lá devia ter desse algodão e álcool suficientes. E, se não tinha álcool, que usasse aguardente, que também era álcool e a esse cheiro já estavam habituados.

A princípio ainda perguntavam quanto era. Mas, como a Intioneta não cobrava nada:
– Que seja pela alma de quem lá tens! – diziam, despedindo-se.
Alguns ainda perguntavam se precisava de alguma ajuda nas lides do campo, a colher uns feijões, a arrebanhar o feno, a descamisar maçarocas ou desgranar o milho e se ofereciam para isso algumas vezes. Outros, moita carrasco!
Já era bem bom que, ao menos, não fossem ingratos e lhe deixassem de falar por qualquer motivo fútil que lhes passara na cabeça ou por mera inveja. A Intioneta levar dinheiro?!
– Deus me livre! – dizia.
Gastar gás para ferver a seringa e agulhas, comprar este material mais álcool e algodão em rama, ser incomodada quando estávamos a almoçar ou jantar:
– Vá, senta-te e come connosco!
Tudo era sem importância. Já com noventa e três anos, meio-coxa do mal que lhe deu, ainda ia atender quem não podia deslocar-se, quando ela também já não podia. Eu vou lá, mas tendes que me levar, que eu já não posso andar. E o Evaristo lá a levava de carro até ao cunhado Dionísio.
Coitado! Morreu pouco depois, que as injecções não curavam o seu mal.
Mãe e enfermeira revelaram ainda os seus talentos quando a Chão, ou talvez a Branca, do Zé Manel Cordeiro me levou a casa, já não sei se ao colo, teria eu cinco a seis anos, por pensar que tinha levado um tiro.
Era Domingo. Tinha eu acabado de sair do terço, como de costume, e dirigia-me a casa. Quando passava à esquina da casa do Zé Manel Cordeiro, ouve-se um tiro de espingarda e «Pam!» Vou eu ao chão. Os presentes assustaram-se, pois pensaram que eu teria sido atingido e morto pelo tiro do Gameira, do Sabugal, à bulha com um quadrazenho, de espingarda na mão. O tiro parece que foi ocasional. Felizmente, não me atingiu. Caí só com o susto do estrondo, ou com algum grão de chumbo a zunir aos meus ouvidos.
Estava a casa cheia de ambulantes, como era habitual juntarem-se na casa de um deles aos Domingos, a petiscar. Chega a Cordeira comigo e conta o sucedido. Minha mãe fica aflita, leva-me para a sala, despe-me a casaquinha e rebusca-me o corpo todo.
Um alívio! Nem um grão de chumbo! Não era preciso a enfermeira dar qualquer injecção ao filho, coisa de que não gostava, já que me mandava a casa da Zabelinha do Papo Seco, quando eu precisava delas. Mas eu não ganhei para o susto.
Por sustos já havia eu passado antes. Com os meus três anos apanhei o sarampelo. A cura consistia em embrulharem as crianças numa manta de lã vermelha e só beber água aquecida ao sol. Foi a colcha vermelha da Aldeia Velha que me embrulhou. A água era aquecida à janela, do lado de dentro, num copo. Nada agradável de beber!
O pior é que, ao mesmo tempo, me aparece um carbunco no indicador da mão direita, por ter comido carne de uma vaca que o João de Paulo matou e vendeu a carne, que teria problemas, ao que diziam. O dedo começou a inchar, o corpo a envenenar e tiveram que me levar no cavalo valente do Zé Borrega ao Dr. Armando, no Soito. Graças ao Zé Borrega que picou bem o cavalo, cheguei a tempo de ser salvo, já que o médico disse que, se demorasse mais meia hora, não haveria salvação. Queimou-me o dedo, sem anestesia, que nesse tempo deveria ser um luxo. Berrei, mas escapei.
Ainda hoje ostento a marca no dedo, como troféu da vida sobre a morte.
Não bastava tudo isto junto e ainda por cima, talvez pelos remédios que tomei, deitei fora pela boca uma ténia com mais de um metro. Era uma fita branca com uns pontos pretos. Vomitei-a para uma bacia a um canto da cozinha. Minha mãe deitou-a para a valeta da rua e era a curiosidade de muitas pessoas que nunca tinham visto uma bicha igual. Resultado da carne da vaca do João de Paulo? Talvez.
Ficou provada a razão da minha magreza: a bicha engolia a comida que eu introduzia pela boca.
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