Mas o Tó, se não podia tocar em dinheiro, não deixaria de ter as suas ideias de rico e fazer as suas compras para todos. Estava já no Seminário, teria os seus dez ou onze anos e já sabia escrever bem.

Quando pequenos, a conselho do Dr. Adalberto, fomos para a praia da Parede, para curar o escrufuloso (escrófulas) do Tó, que apresentava uns caroços no pescoço, onde alugámos casa ao ti Tó Coixo, que dispunha de uma casa livre no Murtal. Connosco, por motivos semelhantes, seguiu a Belmira Engenheira, com os filhos Jaime e Flozindo, das nossas idades.
Calcorriávamos a pé todas as manhãs o caminho do Murtal até à praia da Parede. No caminho sempre íamos colhendo uns figos dalguma quinta ou vivenda que deitavam para a estrada.
Um banheiro metia-nos na água, ao poder de berros, pelo menos da minha parte.
Ainda me recordo dos robertos e da mulher dos bolos saborosos que tirava de uma lata.
De regresso a casa, uma vez o Pedro, filho de uma peixeira nossa vizinha, teve o azar de se meter connosco. Coitado! Levou uma sova das antigas e, com um empurrão, foi parar à cortelha, onde gritava que nem um capado.
Voltemos ao Tó Escrivão. Na praia da Parede estava uma senhora da Amadora com o filho António Jorge, que contraiu amizade com minha mãe. Esta, muito amiga de dar, mesmo a quem não devia favores, todos os anos mandava uma cesta com castanhas e feijões à senhora D. Isilda. O Tó sabia disso e, no seu entender, aquela cesta cheia deveria ter um valor que devia ser pago.
Não pagava em dinheiro, tinha de pagar de outra maneira! – pensou ele.
Como já sabia escrever bem, vá de mandar uma carta ao António Jorge ou à mãe, que, para o efeito, vinha a dar no mesmo.
Pergunta-nos o que queríamos. Eu queria um carrinho de bois em madeira, a Maria queria uma máquina de costura em lata e ele escolheu uma camioneta de lata para si. Para a Dulce, ainda muito pequena, que esperasse!
E toca a fazer o pedido na carta. Passados uns tempos chega uma encomenda com a mercadoria pedida. Minha mãe ficou intrigada com tais presentes, sentindo-se na obrigação de lhe mandar mais uma cestada.
O meu carrinho de bois, com uma pipa em cima, era o meu deleite!
E não menos se deleitavam a Maria e o Tó com a sua máquina de costura e a sua camioneta de lata!
Não sei já quando a mãe descobriu que aquilo tinha sido encomendado pelo Tó. Nem sei se daquela vez apanhou. Apanharia outra vez, já grande, quando sem autorização, foi para Vila Boa jogar a bola e teve de vir alta noite a pé.
Mas o Tó haveria de conservar a sua veia de flanchão, herdada talvez da tia Dulce.
Fora na Parede que uma médica ensinara a mãe a dar injecções.
Se o Dr. Adalberto recebia tantos quadrazenhos no seu consultório, seus conterrâneos, já que o Ozendo, onde nascera, fazia parte de Quadrazais, se receitava tantas injecções aos pacientes e estes se queixavam que na terra não havia quem lhas desse, agora já podia receitar injecções à vontade, bem como o Dr. Armando do Soito, que já havia uma enfermeira na terra.
Num dia em que o Dr. Armando do Soito foi chamado para lancetar o peito de minha mãe, que cheio, se obstinava em não deixar sair o leite, a quem também receitou injecções, teve ocasião de saber de viva voz que ela já dava, de facto, injecções.
Era tão simples! Que diabo! Para quê deslocarem-se ao Sabugal ou ao Soito para uma simples injecção? Era trabalho que eles não queriam por não dar para o tabaco, e aliás era trabalho de enfermeiros. Que diabo, eles eram doutores!
Bons tempos em que se davam ao luxo de rejeitar trabalho, ainda que menor e de pouco proveito! Ouviria eu mais tarde o Dr. Adalberto queixar-se da falta de trabalho, que a debandada para França lhe levara doentes e sãos.
Ao Dr. Armando devo eu ter tirado um segundo curso superior. Um dia foi meu pai consultá-lo. Meu pai, ufano por ter um filho licenciado em Letras, ficou estarrecido ao ouvir do Dr. Armando o comentário:
– Cursos da fome!
Contou-me esta cena e eu jurei que haveria de ganhar mais que eles.
Iniciei o curso de Finanças e agora sou Revisor Oficial de Contas.
A Intioneta começa a treinar e vê que não era problema para ela comprimir um pedaço de carne da nalga ou do braço e espetar a agulha.
Corre o boato que já havia quem desse injecções lá na terra.
– Quem! – perguntam.
– A Intioneta – responde alguém.
– Ah! Inda bem! Já lá vou esta tarde a ver se me dá a injecção.
Adeus dótor Armando! Adeus dótor Adalberto! Agora vou p’rás mãos da Intioneta, que não precisa de tratamento de dótora, nem mesmo de senhora enfermeira.
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