:: :: CONGRESSO DO FORAL DO SABUGAL :: :: A derradeira comunicação da Cimeira dos 700 anos do Foral do Sabugal, realizado há 20 anos, coube ao Professor Universitário Mário Bigotte Chorão, que proferiu uma eloquente oração de sapiência acerca do documento fundador do concelhio.
Mário Emílio Bigotte Chorão nasceu no Sabugal em 1931. Professor da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa, é sócio do Instituto de Direito Comparado Luso-Brasileiro, da Sociedade Científica UCP e do Institut International d’Etudes Européernes “António Rosiminini”(Bolzano). Fez uma magistral e muito erudita comunicação intitulada «Notas de Uma Reflexão Jurídica e Política em Torno do Foral de 1296».
Transcrevemos a intervenção de Mário Bigotte Chorão:
«1. Preâmbulo
1.1. Graças à extrema benevolência dos promotores desta feliz iniciativa cultural e cívica, tenho o privilégio, que muito me honra e enche de júbilo o meu coração, de vir evocar em comunhão convosco — comemorar— um evento verdadeiramente singular dos fastos da nossa Terra: a outorga da carta de foro, ao Sabugal, por D. Dinis.
Esta celebração é oportunidade propícia para uma experiência densamente criativa, para um gesto de grata reverência, para o exercício fecundo do pensamento. Experiência criativa, porque participamos empenhadamente num encontro pessoal e numa festa jubilar, sob a égide de valores fundamentais que iluminam o sentido da nossa vida individual e colectiva.
Gesto de agradecida reverência, porque damos aqui testemunho do sentimento profundo da piedade, no sentido clássico e venerável desta palavra – pietas –, rendendo homenagem reconhecida à terra onde nascemos, a «pequena pátria», berço dos nossos pais, que também, neste momento, lembramos com enternecida gratidão. Mais do que um mero impulso subjectivo de sentimentalismo, é a voz irreprimível de uma realidade natural alicerçada nas profundas raízes concretas do nosso ser que se quer fazer ouvir. Enfim, esta celebração festiva, a que louvavelmente se quis imprimir também um cunho científico, contém um forte apelo à meditação.
Num discurso famoso, a vários títulos notável, proferido para homenagear a memória de um músico conterrâneo, o filósofo Martin Heidegger, sempre tão pródigo no virtuosismo verbal e tão fulgurante, ainda que controverso, nos altos voos especulativos, sustentou que uma celebração comemorativa (Gedenkfeier) impõe pensar (denken), não deixando de observar, com uma ponta de melancolia, que, no mundo de hoje, nos apresentamos, frequentemente, pobres e vazios de pensamento (gedanken-arm, gedanken-los). E não faltam outras interessantes sugestões do mesmo autor, em que o pensar (denken) é relacionado com o memorar (denken is Andenken), com o seguir, reflexivamente, o ser das coisas (nachdenken), com o agradecer (das Denken dankt)…
Em suma, a comemoração que nos congrega nos Paços do Concelho do Sabugal poderá ser, e ainda bem, um acontecimento sóbrio e despojado de pretensões ostentatórias, mas, se não quisermos ceder à tentação do trivial, temos de reconhecer que ela está cheia de motivações e solicitações da mais elevada estirpe espiritual.
1.2. Escolhi o seguinte título para a presente intervenção: Notas de uma reflexão jurídica e política em torno do foral de 1296.
O que trago comigo, para partilhar com o amável auditório desta sessão, são apenas alguns tópicos singelos de uma meditação pessoal, de índole dominantemente jurídica e política, em volta daquele documento.
Não tendo a honra de pertencer ao grémio ilustre dos historiadores, não podia acalentar a pretensão de penetrar nos arcanos do velho direito foral e, muito menos, a veleidade de produzir sobre este revelações originais.
Modesto estudioso das coisas jurídicas e políticas e cidadão comum, que procura estar atento aos rumos da res publica, limitei-me a colher algumas informações úteis junto dos cultivadores da história e interessei-me especialmente pelo significado, por assim dizer, essencial dos forais, enquanto instrumentos de ordenação jurídica e organização política, profundamente enraizados na substância vital, no corpo e alma, da nossa Velha Casa Lusitana.
Que lições se poderão tirar dessa interessante e complexa experiência histórica, no tocante aos processos de formação da nacionalidade, de edificação da sociedade política, de génese do direito, da realização da justiça e de promoção do bem comum? Que revelam as origens e vicissitudes dos forais, em particular quanto à dialéctica entre autonomia local e poder central e quanto à configuração da entidade nacional portuguesa?
Esta reflexão não quer esgotar-se apenas numa mirada retrospectiva, mas pretende, se possível, repercutir no presente e projectar no futuro a leitura histórica dos forais, Isso afigura-se muito oportuno numa hora em que se levantam, com acuidade, múltiplas interrogações sobre a estruturação da sociedade política portuguesa, sobre a representatividade e eficácia dos órgãos do Estado, sobre a descentralização, sobre a dinâmica autárquica, sobre os projectos de regionalização, sobre o aprofundamento da integração europeia, inclusivamente, sobre a autonomia e identidade nacionais.
Os forais ressumam vida vária e intensa por todos os poros e oferecem-se à nossa curiosidade como um vasto painel de figuras, instituições e acontecimentos, parte significativa de uma densa teia que constitui a urdidura secular da história pátria.
Suscitadores de diversificadas interpelações, os forais têm interessado, geralmente em íntima conexão com o tema dos concelhos, os mais notáveis historiadores nacionais, os do passado, com saliência para Alexandre Herculano, e os do presente, cujas achegas vêm enriquecendo, progressivamente, esta importante rubrica dos anais portugueses. E, como é natural, os forais têm merecido a atenção dos especialistas da história jurídica e política, como Gama Barros, Paulo Merêa e Marcelo Caetano, para só referir alguns nomes marcantes de autores já desaparecidos.
Aqui e além, surgem contributos significativos para a pesquisa foraleira, dominados por específicas preocupações temáticas e científicas: é o caso, por exemplo, da monografia de Virgínia Rau sobre as feiras medievais (com interesse directo para o foral dionisíaco) ou do estudo histórico-filológico de Lindley Cintra, centrado na análise da linguagem dos foros de Castelo Rodrigo.
Profundamente implicada na história dos concelhos, a questão tem estado presente, de um modo mais ou menos explícito, no debate dos políticos e ideólogos em volta do municipalismo.
E se quisermos salpicar este discurso um tanto austero com algumas gotas de irreverência camiliana, poderíamos trazer à colação aquele saboroso excerto de A Queda de um Anjo, em que Calisto, presidente da Câmara Municipal de Miranda, clama pelo restauro das leis do foral dado ao concelho pelo monarca fundador, insólito requerimento com o qual «gelou de espanto os vereadores» que «cuidavam estar escutando um alcaide do século XV, levantado do jazigo da catedral».
O que, em suma, pretendo deixar consignado nestas linhas introdutórias é que os forais e municípios são um tema forte e rico da cultura nacional, susceptível de ser versado em diferentes perspectivas e com variada intencionalidade. Sobretudo me empenho em ressaltar, para definir os objectivos da minha comunicação, que estamos perante uma matéria que oferece amplos motivos de interesse para os cultores da ciência jurídica e da ciência política e da qual poderão retirar ensinamentos oportunos os governantes e responsáveis pela «coisa pública». Trata-se de uma questão histórica com enormes virtualidades para os debates do presente.
Subindo um último degrau na escada do saber racional, não é excessivo afirmar que os forais interessam, inclusivamente, à pesquisa filosófica. Mediante uma sondagem em profundidade, os filósofos do direito e da política poderão captar, na experiência viva do direito foral e do municipalismo, um conjunto de indicações valiosas sobre a natureza e os fundamentos da ordem jurídica e da sociedade política. Não conheço, entre nós, estudos com esta dimensão epistemológica, mas existem alguns, e muito apreciáveis, na vizinha Espanha.
2. A carta de D. Dinis no panorama histórico dos forais e concelhos
2.1. Antes de tratarmos directamente da carta concedida ao Sabugal por D. Dinis, importa considerar, de forma genérica e breve, o significado jurídico e político dos forais.
Convém começar por esclarecer que se encontram variantes na terminologia usada para identificar estes documentos: originariamente, chamou-se-lhes carta (vocábulo com alcance, sobretudo, de ordem formal ou diplomática), ou, também, foro, forum e carta de foro (expressões que reflectem já o conteúdo do diploma); posteriormente, desde o século XIV, generalizaram-se os termos foral ou carta de foral, vindo a prevalecer o primeiro, quando, mais tarde, se tomou a iniciativa da reforma destes diplomas.
Não é possível embrenharmo-nos aqui nas interessantes, delicadas e controversas questões de natureza filológica suscitadas por aquela terminologia. Temos de resignar-nos a sumaríssimas e despretensiosas indicações, com a esperança de que a genealogia e o uso originário das palavras possam revelar um pouco do «mistério das coisas».
Em fórum, antepassado latino de foro, algo há que parece prender-se com o conteúdo e a forma dos forais: ordenação da vida colectiva segundo a justiça; acto celebrado à vista de todos, na «praça pública», como um pacto entre o senhor e a comunidade local.
Por sua vez, a palavra foro, no seu significado originário – «o que é conforme à justiça», «o justo», em suma, «o direito» –, afigura-se apropriada a reflectir a realidade íntima e genuína dos forais, enquanto instrumentos do reconhecimento e promoção de direitos das comunidades e dos seus membros. Não assomará aqui, precisamente, o direito no sentido realista e objectivo deste vocábulo, ou seja, o objecto da justiça, o ius suum?
Mas o que é um foral?
De modo aproximativo e resumido, pode dizer-se que se trata de um documento escrito (carta) outorgado pelo rei ou senhor (bispos, mestres de ordens militares, congregações monásticas, etc.) a uma certa colectividade, no qual se consignam direitos e deveres desta colectividade e dos seus membros. Frequentemente, o outorgante serviu-se desse meio para incentivar o povoamento (cartas de povoação), fomentar a agricultura e organizar a defesa, atribuindo aos habitantes de determinada área o domínio da terra e garantindo-lhes direitos e privilégios, ao mesmo tempo que lhes impunha deveres para com o concedente. Por vezes, desprendidos daquela preocupação de povoamento, constituíam estatutos de direito local, com diversificado conteúdo. A outorga da carta de foral contribuía, naturalmente, para estimular a agregação das populações em torno de objectivos comuns e a instituição de órgãos representativos e de gestão da colectividade.
Fontes escritas de direito local, os forais, não só serviam para criar novas normas, como para o reconhecimento de outras já antes vigentes, com realce para as de carácter consuetudinário. Outorgados unilateralmente, atribuía-se-lhes, porém, valor de autêntico pacto, vinculativo para as «partes». Actos jurídicos solenes, eram concedidos «em nome de Deus», prometendo-se benção a quem fosse fiel aos respectivos compromissos e invocando a ira divina sobre quem os traísse. Entendiam-se, então, que a autoridade terrena procedia de Deus (omnis potestas a Deo) e que a lex humana se alicerçava na lex aeterna.
Os forais obedeciam a determinados modelos ou tipos, de acordo com variadas circunstâncias, entre as quais, porventura, a própria intenção do poder central de sujeitar esta matéria a uma certa disciplina. Acontecia também, com frequência, que uma localidade, já dotada de um primeiro foral – foral originário –, vinha a receber, posteriormente, um outro — confirmativo e ampliativo daquele. No caso do Sabugal, não se conhece carta de foral anterior à de 1296, mas esta revela, indiscutivelmente, um carácter ratificador de precedentes foros e costumes. Em 1515, é-lhe concedido um foral novo, este, situado no âmbito da reforma manuelina dos forais.
2.2. Os forais constituem um fenómeno medieval intimamente ligado às vicissitudes da reconquista cristã. Reflectem-se neles preocupações com o povoamento, com o ordenamento local das populações, o cultivo da terra, o fomento do comércio, a organização da defesa.
Com antecedentes na monarquia leonesa, a outorga de forais iniciou-se, entre nós, nos preâmbulos da fundação, por finais do século XI, em pleno Condado Portugalense, e intensificou-se, depois, ao longo da primeira dinastia, até D. Dinis, Com D. Sancho I, o Povoador, conheceu um significativo incremento, atingindo números elevados nos reinados de D. Afonso III e do Rei Lavrador. O movimento ascensional de concessão de forais foi acompanhado, no quadro da política de reforço do poder régio e de refreamento das pretensões senhoriais, pelo abrandamento e cessação da concessão de cartas de couto a instituições religiosas e da doação a particulares de terras e castelos.
O período de desenvolvimento da outorga de forais é caracterizado pela marcante presença, entre as fontes do direito, do costume e do próprio direito foraleiro. Profundamente empenhados na guerra contra o invasor muçulmano e menos disponíveis para as tarefas legislativas e administrativas, os reis apoiam-se, então, em boa medida, na criação jurídica espontânea e autónoma oriunda das comunidades locais.
Posteriormente, com a desvinculação daqueles compromissos bélicos e o fortalecimento progressivo do poder régio, assiste-se a um significativo incremento do processo legislativo e codificador de âmbito nacional, em detrimento das referidas formas locais de produção normativa.
Com D. Manuel, a reforma dos forais, se é verdade que se abona com a necessidade de corresponder a reivindicações populares e de promover a actualização dos forais velhos, certo é também que serve para potenciar o intervencionismo centralista, mediante a imposição de novos deveres aos concelhos.
O ciclo de vida da secular instituição dos forais encerra-se, enfim, em pleno liberalismo, com Mouzinho da Silveira. Acusados de obsoletos, impedientes do desenvolvimento económico, contrários ao direito de propriedade e ofensivos da igualdade dos cidadãos perante a lei, foi decretada a sua supressão em 1832.
A história dos forais acompanha muito de perto a dos concelhos. Não quer isto dizer que o foral se defina, à maneira de Alexandre Herculano, como acto constitutivo de um município. Surgiram concelhos independentemente da outorga de foral e verificou-se esta para fins alheios à instituição das magistraturas municipais. Como quer que seja, os forais, mesmo quando não visaram directamente aquela constituição e organização, serviram para o reconhecimento dos concelhos, com os seus foros e costumes, e incentivaram a sua institucionalização.
Como é bem sabido, são hoje questionadas pela generalidade dos autores as teses romanista (defendida, entre nós, por Herculano e Gama Barros) e germanista ou visigótica (sustentada por Hinojosa) sobre o regime do municipalismo. Tem-se como mais pertinente considerar o concelho como um «produto típico do ambiente da reconquista» — essa é, pelo menos, a opinião autorizada de Cláudio Sanchez Albornoz, acolhida por historiadores nacionais. As circunstâncias peculiares desse acidentado período histórico terão sido propícias à instituição da organização municipal: esta, em povoações já existentes, supriu o vazio da autoridade originária, absorvida pelas obrigações militares; em povoações formadas de novo, ocupou o lugar que naturalmente lhe competia, como emanação da comunidade local, para a promoção do respectivo bem comum.
Mas a mais recente pesquisa histórica, sem prejuízo do papel importante reconhecido aos condicionalismos da Reconquista, faz remontar às origens do municipalismo a uma época mais remota, radicando-o na existência romana ou visigótica. É importante reter esta hipótese, não só pela vetustez e complexidade que aponta à génese da instituição municipal, mas também pelo impulso autonomista que descobre na base dos concelhos.
Convém ainda esclarecer que estes não tinham como única fonte normativa medieval os forais. Dispunham também de compilações elaboradas por sua própria iniciativa, os foros e costumes, verdadeiros «estatutos ou códigos municipais», integrados por normas de variada procedência (costumes, posturas de magistrados, forais, etc.) e respeitantes a diversas matérias (políticas, administrativas, civis, processuais, etc.). Os foros e costumes, que muitas vezes transcrevem o foral propriamente dito, são mais extensos do que este: por isso, se designam, estas fontes respectivamente, foro extenso («fuero extenso») e foro breve («fuero breve»).
2.3. Não obstante os meritórios contributos de vários estudiosos, uma bruma de mistérios e lendas, de dúvidas e imprecisões, continua a envolver vários aspectos das origens e evolução da nossa terra, desfiando a capacidade investigadora de arqueólogos e historiadores. Auguramos que, mercê do seu labor paciente e rigoroso, se venha oportunamente e edificar a obra científica que o Sabugal reclama.
Mas aquelas obscuridades e lacunas não impedem, em todo o caso, que vislumbremos as remotas raízes e os velhos e notáveis pergaminhos do nosso concelho.
Se estamos a celebrar, justificadamente, o foral dionisíaco, marco miliário da história portuguesa desta terra, não esqueçamos que a existência dele e os seus títulos jurídicos antecedem a outorga da carta de 1296. Sabe-se, nomeadamente, do lugar que ocupou a região de Riba-Côa nas preocupações políticas de repovoamento dos reis leoneses Fernando II e Afonso IX. A região que vai de Almeida ao Sabugal, regista Lindley Cintra, era «deserta ou quase deserta, constituía uma espécie de terra de ninguém, de vez em quando atravessada pelas expedições militares cristãs ou sarracenas», Afonso IX de Leão, rei a partir de 1188, empenhou-se expressamente no repovoamento e defesa do território desta região, e há notícias de várias visitas do monarca às povoações de Riba-Côa, designadamente ao Sabugal. Terá sido ele o primeiro a outorgar-lhe foro?
Também existe memória documental do que parece ser o uso primogénito do termo do Sabugal: uma escritura de Julho de 1219, em que se titula a doação à Ordem do Pereira do lugar de Naves Frias, «in termino Sabugali».
Não sei se «el-rei D. Dinis fez tudo quanto quis», como sói dizer-se, mas não tenho dúvidas em afirmar que a obra que deixou, ao cabo de quarenta e seis anos de reinado (1279- 1325) e sessenta e quatro de vida, permite considerá-lo, sem favor, um dos maiores construtores de Portugal, do seu corpo e da sua alma. Artífice iluminado da ele teve o raro privilégio de contar, ao seu lado com a presença benéfica, inspirativa e, decerto, orante – de uma excelsa Rainha.
Dotado de rasgada visão política, com apurado sentido de Estado e do bem comum, cuidou deste, a bem dizer em todas as dimensões – espirituais, culturais e materiais – e com notável proficiência. Completou o traçado físico da Nação, definiu, diplomaticamente, as suas fronteiras (Tratado de Alcanizes, de 12 de Setembro de 1297), fortaleceu a defesa militar do Reino, consolidou a autoridade do Estado contra os privilégios e abusos senhoriais, promoveu os concelhos, incentivou o comércio e a agricultura, incrementou as obras públicas, desenvolveu a marinha, patrocinou a Língua Portuguesa (que, segundo Fernando Pessoa, é a nossa Pátria), fomentou a cultura… Protector da agricultura, o Rei-Lavrador foi também um insigne estimulador da cultura animi.
Rei-Poeta, «pai da poesia portuguesa», cantaram seus feitos os grandes poetas nacionais, testemunhas e profetas privilegiados do destino pátrio. D. Dinis tem lugar de merecido realce em Os Lusíadas e na Mensagem.
Camões deixou aureamente gravado nas estâncias do seu poema que, com D. Dinis, alcançada a paz, o reino floresceu próspero, mediante instituições, leis e costumes; que o Rei fomentou a sementeira de saber e poesia nas margens do Mondego; que construiu e reedificou nobres vilas, fortalezas e «quase o reino todo reformou».
Na Mensagem, Fernando Pessoa, que elege, para celebrar, apenas dois dos reis da primeira dinastia, o Fundador e D. Dinis, canta este último no poema sexto de «Os Castelos». Um comentador autorizado do pequeno-grande livro pessoano, António Cirurgião, observou, a propósito, que seis é o número da perfeição, aquele que assinala, no Génesis, o dia derradeiro da obra da criação divina. «É como se, com D. Dinis, a criação de Portugal ficasse completa, no seu aspecto ontológico». Com efeito, ele remata a delimitação do espaço continental português e, sobretudo, imprime a forma espiritual definitiva ide ao corpo nacional.
Em versos lapidares de genial inspiração e esplendorosa fecundidade metafórica, Pessoa exalta o rei-poeta e lavrador, antecipador providencial e predestinado da gesta marítima e colonizadora dos Portugueses:
«Na noite escreve um seu Cantar de Amigo
O plantador das naus a haver,
E ouve um silêncio murmuro consigo:
É o rumor dos pinhaes que, como um trigo
De Imperio, ondulam sem se poder ver.
Arroio, esse cantar, jovem e puro,
Busca o oceano por achar;
E a falta dos pinhaes, marulho obscuro,
É o som presente d’esse mar futuro,
É a voz da terra anciando pelo mar.»
D. Dinis pode bem considerar-se um benemérito do Sabugal. A ingente obra política da sua governação está em boa parte reflectida, como que concentradamente e à escala destas terras, nas paragens sabugalenses do Côa.
Aqui se põe o ponto final feliz à acção de conquista do território, aqui se ilustram e documentam, expressivamente, os cuidados reais com o povoamento, a agricultura, a defesa, o comércio, as obras públicas e a paz. Aqui se atesta a atenção prestada à dinamização das comunidades focais e ao reconhecimento dos seus foros.
«Ponte, castelo e fonte fiz…» — eis o eco persistente da vox populi a lembrar a eficácia realizadora de D. Dinis na nossa terra. Ainda que alguma cautela se imponha neste balanço, não parece questionável a importância das benfeitorias que o Sabugal ficou a dever ao grande rei.
A outorga do foral, em 1296, estando D. Dinis em Trancoso, faz hoje, 10 de Novembro, precisamente, dia por dia, setecentos anos, é uma manifestação mais da benemerência régia.
Vejamos, de seguida, em rápida síntese, o que de mais importante nos revela a leitura do multicentenário documento.
2.4. A primeira nota a ressaltar é o facto de a carta (assim se autotitula o diploma) estar redigida em português. A D. Dinis, que se notabilizou, como já foi lembrado, como defensor da nossa Língua, pertence o mérito de a ter mandado usar na redacção dos documentos oficiais.
O rei, uma vez integrado o Sabugal no território pátrio, confirma o foro e bons costumes do concelho, integralmente e «pera todo sempre». E, pela presente carta, compromete-se a respeitar os títulos de propriedade e domínio sobre as terras, adquiridos pelos respectivos habitantes, segundo o respectivo foro, antes da tomada da Vila. Promete ainda que o Sabugal, o seu castelo e as alcaidias jamais serão objecto de disposição a favor de quaisquer senhores — infante ou rico-homem -, devendo permanecer portanto, na dependência do próprio rei. Asseguravam-se, assim, direitos precedentes da população local e desvaneciam-se pretensões de hegemonia senhorial.
O foral de 1296 inclui ainda a concessão ao Sabugal de uma feira geral, com privilégios de feira franca, a realizar anualmente, em Julho, por um período de quinze dias. É contemplada especialmente a protecção do vinho produzido na região, proibindo a carta que alguém de fora incube vinho e o leve a vender na Vila e seu termo, enquanto aí houver vinho de produção local. Também no tocante à concessão da feira o foral de D. Dinis reveste carácter confirmativo, ratificando, com os respectivos privilégios, a feira já existente. Registe-se, de passagem, que a feira do Sabugal foi impugnada pelo concelho de Trancoso, com fundamento na coincidência com a sua própria feira.
As feiras constituíam, no período medieval, uma realidade do maior alcance para a subsistência das populações e o desenvolvimento económico, gravemente entravados pelos condicionalismos bélicos da Reconquista. Com relevância crescente em toda a parte a partir do século XI, tornaram-se mais frequentes entre nós a partir do século XIII, tendo D. Afonso III e D. Dinis dado um forte impulso à sua realização. A sua importância excedia amplamente a dos simples mercados, constando do foral de Castelo Mendo (1229) a primeira referência a uma feira como acontecimento distinto do mercado local. A concessão de feira era objecto, por vezes, de um diploma autónomo (carta de feira).
Através dos forais, visava-se a segurança dos feirantes e outorgavam-se a estes privilégios vários, como a isenção de certos tributos — sisa e portagem – e a impenhorabilidade de bens pelos credores, salvo por dívidas contraídas durante a própria feira. Garantia-se, assim, a chamada «paz da feira». Além disso, impedia-se a intervenção das autoridades judiciais ordinárias nas feiras, cuja fiscalização se cometia a inspectores judiciais — os almotacés.
A Igreja contribuiu também, de algum modo, para a protecção das feiras coincidindo estas, frequentemente, com festividades do calendário católico, mas opôs-se à sua realização ao Domingo, dia do Senhor e do descanso semanal, considerando mais indicados, para o efeito, os dias feriais, isto é, os dias úteis da semana.
Enfim, no texto da carta de 1296 pode ser facilmente comprovada a solenidade formal de que se revestiam os forais, conforme já se assinalou.
3. Lições perenes de uma experiência histórica
3.1. Uma vez completado este despretensioso apanhado de factos pertencentes ao passado português dos forais e concelhos, justifica-se fazer, a título conclusivo, um breve exercício hermenêutico dessa história, para dela tentar extrair algumas lições.
A história, em sentido forte, não se limita a um puro registo de acontecimentos, mas exige sempre uma interpretação deles, se queremos captá-los no seu mais relevante significado humano.
Radicalizando essa interpretação, creio que é mesmo possível – e oportuno – retirar daquelas páginas da história pátria sobre o direito foraleiro e o municipalismo algumas instrutivas ilações de alcance universal, situadas já no plano filosófico-político e filosófico-jurídico. A reflexão filosófica político-jurídica que se desenvolve apenas numa base abstracta e racionalista, à margem da experiência histórica, não passa de um artificialismo estéril.
Vejamos, então, em dois brevíssimos tópicos finais, o que resulta dessa opção metodológica.
3.2. Parece indiscutível que a concessão dos forais e a constituição dos concelhos representam factores decisivos na génese e configuração da nação portuguesa, do Estado nacional e da respectiva ordem jurídica. Acompanhar os passos primitivos do direito foraleiro e o processo de gestação municipal é, de certo modo, assistir aos momentos aurorais de Portugal como realidade social, política e jurídica.
A definição da entidade nacional, a institucionalização do Estado e a construção da ordem jurídica constituem um fenómeno complexo e progressivo, que abrange uma densa teia de múltiplos factores e não é susceptível de datação rigorosa. Tem razão o historiador José Mattoso, ao afirmar, a propósito das origens de Portugal, que «a nação não tem certidão de nascimento».
Que indicações se colhem, da observação histórica dos forais e dos concelhos, no tocante à génese da comunidade nacional, da sua organização política e ordenação jurídica?
Tento resumi-las a seguir, em simples esboço.
Desde uma época muito remota, anterior ao domínio romano e visigótico, foram surgindo autonomamente, na Península Ibérica, comunidades locais, dotadas do seu próprio direito e destinadas a prover à satisfação de necessidades elementares das populações. Essas comunidades, que sobrevivem à implantação da autoridade senhorial e monárquica, constituem antecedentes longínquos dos municípios, são como que células originárias com que se foi estruturando o corpo social, político e jurídico de Portugal.
A invasão muçulmana e a consequente reconquista cristã da Península vieram, por sua vez, a influenciar decisivamente o desenvolvimento de colectividades locais autónomas. Os forais, outorgados pelos reis ou senhores, fomentaram a criação ou consolidação dessas comunidades, por motivos que são conhecidos – povoar, cultivar, organizar a defesa, etc. Mais do que uma simples concessão unilateral do poder régio ou senhorial, esses diplomas representavam um pacto que servia ao ajuste de interesses das «partes» e traduzia o reconhecimento pelo outorgante de uma mais ou menos ampla autonomia jurídica dessas comunidades.
A instituição dos concelhos propriamente ditos insere-se neste quadro histórico, apresentando-se, já oportunamente se referiu, como um produto característico da Reconquista.
Não é forçado dizer que sobre estas instituições – forais e municípios – se projectam, de algum modo os ideais cristãos, que, tendo animado a defesa contra o Islão, constituem também, sem dúvida, um dos mais sólidos esteios da nacionalidade portuguesa.
É conveniente notar que no processo de constituição do Estado nacional português entram, como factores inseparáveis, em estreita dialéctica, uma componente autonómico-local, com profundas raízes históricas, e um elemento de autoridade centralizadora e unificadora, representado pelo poder real, que se vai afirmando com crescente vigor. O Rei necessita de recolher e incentivar essas manifestações autonómicas e de se apoiar nelas para dinamizar a ordenação político-administrativa e jurídica do território, para fortalecer o centro de decisão política e garantir a unidade nacional contra tendências centrífugas. As comunidades locais, por sua vez, precisam de contar com a homologação real, para preservarem os seus foros, adquirirem consistência institucional e se defenderem dos abusos e prepotências do poder senhorial. Naturalmente, o desenvolvimento, ao longo do tempo, deste delicado e denso «diálogo» haveria de contribuir, de modo decisivo, para a gestação de uma consciência colectiva nacional, elemento estruturante fundamental da identidade portuguesa.
A história das relações entre o poder local e o poder central é rica em vicissitudes. Sobre o pano de fundo de uma tendência favorável à estabilização do Estado nacional, assiste-se ao animado debate entre o impulso centralizador e as tentativas descentralizadoras. No tocante ao direito foral, como já se viu, depois de uma fase de apogeu, em particular nos séculos XI e XIII, a sua importância autonómica foi abalada pela reforma manuelina dos forais, até que se chegou à extinção destes.
Por seu turno, a longa história do municipalismo está recheada de episódios que ilustram sugestivamente as tensões entre o intervencionismo estatal – de que um dos exemplos mais conhecidos e típicos é a nomeação dos chamados juízes de fora, logo no século XIV — e a reivindicação de mais amplas liberdades e poderes por parte da autarquia municipal. Não é possível tratar aqui dessa interessante questão que tem dado azo a viva e persistente disputa, prolongada e reacendida nos nossos dias com novos ingredientes e motivações. A história mostra que a intervenção do poder central, se, nalguns casos, revelava autênticos excessos autocráticos e estatalistas, ocorria, outras vezes, para assegurar em melhores condições a salvaguarda da justiça e a promoção do bem comum, não sendo raro que se desse a solicitação das próprias populações e autoridades locais.
A melhor lição que, nesta matéria, se pode retirar da história pátria aponta no sentido da busca incessante e prudente do justo equilíbrio, entre as autonomias locais e o poder central, com a salvaguarda, em nome do bem comum, das vantagens do Estado nacional unitário, valioso legado dos nossos maiores que nos cumpre preservar. A esta luz, não é sem justificada apreensão que muitos encaram os projectos actuais, de imprecisos contornos, sobre a regionalização.
3.3. A experiência histórica dos forais, da constituição dos concelhos e da construção do Estado nacional português ilustra ao vivo, por assim dizer, geneticamente, aquilo que são, na sua essência, a sociedade política e a ordem jurídica e revela também, de forma expressiva, o que pode considerar-se uma visão realista da política e do direito.
Assistimos, com efeito, ao germinar da sociedade política, com os seus elementos constitutivos básicos — o bem comum, o ordenamento jurídico, o povo, a autoridade. Vemos o misterioso despontar da nação como realidade natural e fundamental da vida colectiva dos homens. E podemo-nos aperceber, a partir das comunidades mais rudimentares, do processo genético do direito enquanto ordenação segundo a justiça. Na genealogia do termo «foral» está presente, como vimos, a realização do justo.
Temos ainda a oportunidade de observar ab ovo, nestas páginas de memórias nacionais, que a sociedade e a ordem jurídica surgem, não como artificiosas construções do nacionalismo geométrico, mas como obra empírica da razão prática, prudencialmente adaptada às circunstâncias do tempo e lugar e com respostas a problemas humanos bem concretos e elementares — o domínio do solo, o povoamento, a agricultura, a segurança, o regime das feiras… Os direitos e liberdades que vão emergindo neste processo não se traduzem em declarações abstractas e retóricas de prerrogativas ideais, mas exprimem a garantia de alguns bens indispensáveis à vida corrente dos indivíduos e das colectividades. Em suma, dir-se-ia que, subjacente a esta experiência político-jurídica, está uma antropologia realista, atenta ao «homem de carne e osso», situado no seu quadro natural de vida.
Este capítulo da nossa história é significativo, também, como expressão o pluralismo político e jurídico, traduzido na diversificação institucional da comunidade política e na variedade de fontes do direito. Não querendo eu, à maneira do camiliano Calisto, presidente da Câmara de Miranda, restaurar, nos dias de hoje, os foros e concelhos medievais, não me dispenso, entretanto, de sublinhar a sabedoria perene que se contém no pluralismo bem entendido. Conjugado com o princípio fundamental da subsidiariedade, ele constitui uma realidade salutar: serve de antídoto aos excessos estatizantes, sem comprometer a unidade política e jurídica nacional, e constitui poderoso incentivo à mais plena realização do bem comum.
É tempo de pôr termo a esta já longa reflexão. Aqui a deixo, como modesto contributo para a festiva celebração do foral de D. Dinis que nos reuniu à sombra do nosso velho Castelo, atentos à voz secular da tradição, mas com os olhos postos, prospectivamente, no porvir do Sabugal e da Pátria, que todos auguramos feliz.
Diz-se com razão, que povo que não guarda a memória do seu passado está condenado a não ter futuro. Nós não queremos incorrer nesta funesta e drástica combinação.
:: ::
A história do Congresso, por Paulo Leitão Batista
Leave a Reply