São tantas e tais as mudanças na vida das gentes do Interior, especialmente da raia e mormente em Quadrazais, que vale a pena recordar como era a vida em Quadrazais nos primeiros sessenta anos do século passado e estabelecer uma comparação com os anos que se seguiram, sobretudo os actuais.

V – O ciclo das Culturas
Os terrenos estão ao abandono, mesmo os regadios, outrora tão disputados. O mesmo acontece com os lameiros e regadas, tão apreciados antigamente, onde já crescem giestas e com os regos da água quase entupidos.
Lá há um ou outro que mete lá umas vacas, umas ovelhas ou um cavalo. Agadanhar o feno e guardá-lo para o Inverno, creio que já ninguém faz isso. As levas, outrora verdejantes de searas de centeio, não passam de giestais e matagais onde se passeiam impunemente javalis e outra bicharada. Até os castanheiros sofreram uma grande redução com o seu derrube para construir casas.
Os magustos no dia de Todos os Santos passaram à história. Já pouca gente tem castanhas e, assim, se acabaram hábitos de comer castanhas assadas ou cozidas ao almoço (pequeno almoço) na maioria das casas. Felizmente que há uma ou duas pessoas que vendem castanhas da sua colheita, mas em pouca quantidade. Como vir de França apanhar as castanhas, se já não tiverem família em Quadrazais? Os javalis agradecem que não as apanhem.
Colher a abrótea? Deixá-la crescer nas matas. Pode ser que os javalis a comam.
Dos trabalhos mais comuns…
1 – Arrancar e destarroar cepas – Para quê? Para os poucos residentes vendem-se cargas de lenha de carvalho ou azinho por gente da terra (ciganos) ou de fora. Já não há quem puxe ao enxadão e os ganchos para destarroar já não funcionam. Até a lenha para o madeiro do Natal já vem de fora, que já não haveria rapazes para a ir roubar.
2 – A folhada – Nem há gente para a ajuntar, nem vontade de o fazer, pois para nada serviria. Animais já não há para lhes deitar a folhada na cama. Só se o Governo obrigar a limpar as matas para evitar incêndios.
3 – Noites do gado – Para quê se já não se cultivam os campos nem há gado para isso? Se já não há, praticamente, gado, já não há esse negócio de noitadas (estercadas) de gado, com a mudança de cancelas. Nem sei se ainda haverá algum pastor que tenha cancelas.
4 – Sementeiras – de cereais-houve tempos em que o Estado dava um subsídio por cada quilo de centeio ou trigo colhido e havia algumas pessoas que cultivavam os seus terrenos ealheios. Há já uns anos que vejo os campos de pousio, o que parece querer dizer que acabaram os subsídios e, consequentemente, as sementeiras:
– de batatas – passam a ser quase objecto de saudade, pois só se cultiva alguma leira em quintais. Haverá miúdos que não saberão como aparecem, como acontece hoje nas cidades.
– de milho – outro objecto de saudade.
– de nabos – mais um objecto de saudade, já que os destinatários, os porcos, já não existem.
– de feijões – será que se criam nos supermercados? – pensarão os poucos miúdos que residirem em Quadrazais. Terão de criar quintas pedagógicas para serem visitadas pelos alunos das escolas, para perceberem donde vêm os cereais e legumes e onde se veja como se fazia um nagalho, se atava uma facha de palha entre outras coisas do antigamente. Tempos virão em que, para verem uma cabra, ovelha ou vaca, terão de visitar quintas pedagógicas.
5 – Sachas-se já quase não se semeiam batatas, logo não há lugar a sachas.
6 – Regas – para as pequenas hortas junto de casa fazem-se com a água da rede pública ou com a de algum furo ou poço com motor.
7 – Ceifas – Onde estão as searas? No tempo em que recebiam subsídio por cada quilo de cereal, havia sementeiras, onde as ervas eram mortas com químicos. Agora, sem subsídios, ninguém semeia nada. Tudo para relva para algum gado ou para o mato crescer. Cornachos? Não há searas onde se criem e não sei se ainda os comprariam.
8 – Colheitas – Não se semeia, logo não se colhe. Arrancar batatas… Apenas o João Constantino ainda semeava batatas para venda. Os restantes cultivam uma pequena horta para consumo próprio ou compram-nas no supermercado.
9 – Desgranar milho e feijões – Tudo acabou. O pouco que se semeia é para consumo de casa, em pequena quantidade, fácil de desgranar pelos próprios. Se precisassem ajuda de vizinhos, dificilmente a encontrariam.
10 – Ceifas, acarreijas e malhas – Não sei se ainda cultivam centeio. Há alguns anos havia quem o semeasse em terras alugadas ou que lhes eram entregues, porque recebiam um subsídio por quilo. Mas já não havia malhas a mangual. Tudo é feito com máquinas, tal como as ceifas. Tudo pertence ao passado, com saudade das canções, das merendas, dos nagalhos.
11 – Trabalho das vinhas – Como já não há vinhas, salvo uma pequena, acabaram as cavas, caldas, enxofradelas, preparação de dornas e pipas, esmagamento das uvas e feitura de aguardente. Os burros descansaram do árduo trabalho de acarretar água nas andilhas, agora facilitado por já haver água canalizada. Quem quiser beber vinho compra um garrafão dele na taberna, tal como garrafas de aguardente, que também pode adquirir nos supermercados. Infelizmente, quem fica a perder são os produtos nacionais, já que, em vez de aguardente, compram uísques e conhaques da estranja. Oferecer um copo a um amigo tirado do garrafão já não tem o mesmo sabor, nem a convivência é igual, como se fosse junto do pipo.
O aspecto positivo de tudo isto é que se vão formando propriedades de média dimensão, com a venda dos terrenos ao desbarato, que um ou outro ainda adquire. Estariam criadas as condições para uma agricultura de maior escala que produzisse excedentes para venda. Assim houvesse pessoas para trabalhar as terras, que a dureza do trabalho diminuiu muito- sementeiras mecânicas, regas com espalhadores, colheitas com tractores, ceifeiras, malhadeiras e ensacamento dos cereais.
Seria bom que se criasse um museu das actividades e dos instrumentos agrícolas, hoje já quase desaparecidos: enxadão, gancho, gadanha, foice, fóção, ancinho, pá de levantar o grão, peneira, crivo, criva, forquilha, cambos, nora e copos, trilho, mangual, albarda, molim, canga, arado, charrua e charrueco, carro de bois com os estadulhos e o cetos, cântaros, andilhas, arrocho, barbilho, chocalho, campainha das vacas, guiso, carroça, tirantes e outros apetrechos, tesoura da tosquia, pipo de carvalho e dorna, enxofradeira, pulverizador, tropilha, esmagadeira. Que tal arranjar uma secção para as sementeiras de centeio, as colheitas e malhas, outra para as sementeiras, colheitas e preparação de batatas, milho, feijões, couves e outros legumes, com os instrumentos respectivos, e outra para o transporte das colheitas, do estrume, das cepas e da água?
Um burro em madeira ou outro material aparelhado, uma eira com a palha, os manguais e outros instrumentos, uma leira de batatas ou feijões com o gancho, a enxada, um pouco de mato com o malho e a podoa, um pouco de lameiro com a gadanha e seus apetrechos, um carro de vacas e seus apetrechos, uma francela de fazer o queijo e acinchos, medidas-um alqueire, meio alqueire, rasoiro; pesos-romana, cambos, etc. Seria bom a Junta de Freguesia adquirir casas velhas no meio da povoação com escadas exteriores, guardas, loje, triato, caniço para secar as castanhas, poleiro das pitas, pia do marrano, loje do burro, etc., a serem enquadradas num museu ao vivo. E isto antes que tudo desapareça!
Felizmente que um moinho, o do falecido Tonho Jaquim Casado, à Ponte, foi restaurado e está em condições de ser visto, mesmo em funcionamento, por visitantes. Poderia ser enquadrado no conjunto do futuro museu.
A propósito de os objectos irem desaparecendo, fiquei estupefacto há dias ao ver numa feira de antiguidades na Costa de Caparica dois instrumentos com que na minha infância homens de São Miguel d’Acha e terras vizinhas furavam os pratos de loiça para colar com agrafos as partes fracturadas.
Parece-me haver aqui algum saudosismo se, bem que salutar