São tantas e tais as mudanças na vida das gentes do Interior, especialmente da Raia e mormente em Quadrazais, que vale a pena recordar como era a vida em Quadrazais nos primeiros sessenta anos do século passado e estabelecer uma comparação com os anos que se seguiram, sobretudo os actuais.

V – O ciclo das Culturas
Agricultura e Pastorícia
Tratando-se de zona de minifúndio, as culturas eram de subsistência. Embora nem todos fossem proprietários, a maioria das famílias tinha um pequeno chão para cultivo dos bens consumíveis do dia-a-dia ou uma leva para semear centeio. Que cultivavam nos pequenos chões?
Batatas, milho, fijões (feijões) argentinos ou pardos, couves, tarrábias (beterrabas) e botelhas (abóboras), tudo para consumo familiar e para engordar o marraninho para o Natal, juntando-lhes algumas ervas que cresciam a esmo, como tassóis, corrióis e boldregas (beldroegas). Por vezes alternavam as sementeiras com nabos ou farrém (ferrã) para os animais.
A castanha era a base da alimentação. Comia-se caldudo ao almoço (pequeno almoço), castanhas cozidas ou assadas. No jantar (almoço) não estavam presentes as castanhas. Mas, à ceia (jantar) lá voltavam elas sob a forma de cozidas ou assadas. Só quando se acabavam, se passava para batatas ou feijões.
Poucos eram os que conseguiam vender excedentes de castanhas, feijões ou batatas, que o ti Zé Vinhas e o Germano ensacavam por conta de compradores de fora, como o Jaquim Canelo, do Casteleiro, que vinham carregar a camioneta quando já havia mercadoria para tanto.
Por vezes ia-se ao mercado do Sabugal vender um saco de feijões, de milho ou de batatas. Eram, portanto, culturas de subsistência.
Nas levas semeava-se centeio, também para consumo familiar, sendo raro haver excedentes que, tal como a batata ou castanha, seriam levados por alguém de fora.
Associativismo era inexistente. Imperava o individualismo.
Poucos eram os que tinham terrenos que dessem para produzir para casa e para vender.
A batata, couves, feijões, milho e beterrabas exigiam água, que era disputada por vezes em bulhas, que originavam, não raro, mortes. Havia quem tivesse um poço que era deitado às manhãs, sabe Deus com que suores a puxar aos cambos, ou a andar à roda, no caso dos burros.
No Outono, quando se apanhavam as castanhas, encontrava-se um ou outro cogumelo que, posto nas brasas era depois espremido e, com sal, era comido como petisco, sobretudo pelas crianças. Nos pinhais, também no Outono, apareciam uns míscaros, que alguns conheciam ser bons ou ruins. Havia quem trouxesse uma cesta deles, o que dava para comerem uma panela de arroz com míscaros e até dava para venderem uma parte. Não havia cultura deles.
Um ou outro cultivava tremoceiros para azotar as vinhas ou outros terrenos. Um ou outro tratava os tremoços na ribeira, em sacos, sendo depois vendidos à Praça ou Vale pela Trindade Torres ou pela Pitagala.
Caracóis, era coisa nojenta que ninguém comia, quanto mais cultivar.
Medronhos havia-os na serra, na Quinta do Major, mas creio que não eram aproveitados para aguardente.
Amoras, comiam-nas os miúdos, que as colhiam à beira dos caminhos, onde abundavam. Mas era um petisco e não refeição. Pensar em fazer doçaria com elas ou outro produto, ninguém pensou.
Fruta, surgia nalguns quintais. Ninguém a vendia, por ser mal visto e, ou era dada aos animais, ou a ofereciam aos vizinhos. Eram os de Penamacor que aí vendiam uvas, figos, peras ou maçãs. A melancia era consumida na Santa Eufêmia, trazida de longe, tal como o melão.
Havia umas tantas vinhas, também pequenas e, portanto, para consumo de casa. Apesar de haver a Adega Cooperativa da Colónia Agrícola de Martim Rei (Peladas), poucos eram os associados, já que, com vinhas pequenas, não havia excedentes. Fazia-se também do engaço a aguardente para consumo caseiro e dava para vender algum excedente às tabernas e a particulares. Das vides fazia-se borralho para as braseiras.
Leite – os gados abundavam e havia quem fizesse alguns queijos de cabra. A ovelha não era ordenhada. O seu leite era mamado pelos borreguitos. Os queijos de cabra eram para consumo da casa. Nunca vi um quadrazenho que vendesse queijos na terra ou nos mercados. Na terra eram as vale d’espinheiras que faziam o negócio. A maioria das pessoas comprava-os nos mercados do Sabugal ou do Soito.
Peixe – apesar do rio ter trutas e barbos, não se vendiam e ninguém se lembrou de fazer criação delas e montar um restaurante, que o dinheiro não dava para ir comer fora.
A tosquia das ovelhas – Tosquiadores de fora vinham na Primavera com as suas enormes tesouras, vindos não sei donde, certamente do Campo. Os pastores encaminhavam os seus rebanhos para a loje do Piroco e aí executavam a magia de rapar uma ovelha e pô-la nua, ficando com um velo de lã na mão. Creio que eram vendidos a compradores de fora para os levarem para a Covilhã.
A abrótea era procurada para os porcos. A carqueja servia para aquecer os ferros de engomar dos alfaiates. Mas, não poderia ter outra aplicação?
O carvalho dava bolota que talvez pudesse ser dada aos porcos. Mas, como não era costume, apodrecia no chão. Dos carvalhos já de bons anos de idade tiravam as culmieiras para segurar o primeiro andar das casas. Do carvalho tiravam ainda a lenha para as lareiras (lume) e também as raízes (as cepas) que, com muito suor, eram cavadas a enxadão pelos homens e depois destarroadas pelas mulheres, pagas com menor salário. Eram a base da alimentação das lareiras. Da lenha de carvalho fazia-se carvão. Giestas cresciam nos montes, sendo cortadas para acender o lume ou para a cama dos animais. Muitas serviam de alimentação às cabras. Os pinheiros eram vendidos a serrações ou eram cortados e mandados serrar pelos donos a serradores vindos de fora para fazer barrotes para a tesoura que seguraria o telhado, o solho (soalho) do primeiro piso, as portas e janelas e ainda os costaneiros para cancelas. Também o castanheiro dava madeira para boas portas e janelas.
Limpavam-se os pinhais e matas de carvalhos, juntando-se a caruma ou a folhada misturada com giestas, fetos, vergônteas de carvalhos e outros arbustos, que se espalhavam nos currais e cama dos gados para curtir em estrume.
Os enchidos eram para consumo caseiro.
Havia alguns lameiros junto dos ribeiros e do Côa e também regadas, lameiros de pequena dimensão. Eram muito apreciados para os gados e para os animais. Nos lameiros colhiam-se alguns carros de feno que dariam comida às vacas e cavalos no Inverno. Nas regadas cortava-se a erva para os animais.
Os cultivadores de centeio colhiam ainda uns carros de palha que espalhavam na cama dos animais e nos currais para curtir e transformar em estrume. Raramente se vendia. Nas searas de centeio colhiam-se os cornachos que, compradores de fora, os procuravam.
Criavam-se umas galinhas e coelhos para consumo da casa. Havia quem vendesse uns ovos, mas em pequena quantidade.
Carne – comia-se a de galinha, de coelho, de porco, de cabrito. Bife era para os da cidade.
Plantas medicinais e chás – havia muitas ervas para chás, como a erva de São Roberto, a erva-cidreira, a erva do diabo, a maciela (marcela), o poejo, etc., cujo efeito era conhecido de muita gente. A carqueja também servia para chá.
Não era terra de oliveiras, não se fazendo, pois, azeite, salvo na Quinta do Major.
Concluíndo
Na minha infância os chões eram de pequena dimensão e, portanto, as culturas eram de subsistência. Tentava-se unir dois ou mais chões por casamentos entre primos, que uniam o que os pais haviam separado. A tentativa de emparcelamento trouxe poucos resultados.
Os trabalhos do campo consistiam, sobretudo, em:
1 – Arrancar e destarroar cepas no Outono para se aquecerem no Inverno.
2 – Juntar a folhada no Outono para deitar na cama dos gados e fazer estrume para adubar os campos.
3 – As noitadas do gado (as estercadas) – Na Primavera o gado ia dormir nos terrenos de quem havia contratado com o dono do gado deixar-lhe comer a erva de sua propriedade por umas tantas noites. Para tal, o pastor acarretava as cancelas no dorso de um burro para fazer o bardo, onde o gado dormiria. A cena repetia-se no final de Setembro para as terras de semeadura de centeio ou trigo, a semear em Outubro.
4 – Sementeiras: de centeio e trigo – Eram feitas em Outubro, após ter sido preparado o terreno com lavras e agradeadelas.
– de batatais – Eram feitas em Maio, após preparação do terreno com lavras ou cavas, destarroagens e agradeadelas.
– de milho e zaburro também em Maio.
– de beterrabas – eram semeadas em Maio/Junho nos regos que separavam as leiras de batatas. Os nabos eram semeados em Setembro/Outubro.
– de feijões – em Maio/Junho.
5 – Sachas – quando as batatas já vinham nascidas era necessário fazer as sachas para retirar as ervas más. Eram normalmente as mulheres que as faziam.
6 – Regas – algumas mortes se deram por causa da disputa das águas de rega. Para tudo estar hoje abandonado!
7 – Mondas – do centeio e trigo, feitas principalmente por mulheres, que arrancavam as ervas rins.
8 – As colheitas – Por finais de Agosto ou em Setembro arrancavam-se as batatas com ganchos. Era trabalho de mulheres. Muitas vezes não se pagava. Faziam um acordo de ir para determinada pessoa que depois pagaria com a mesma moeda. Era andar a torna-dia.
9 – Milho – Desgranar milho e feijões aos serões dentro de casa – Normalmente era feito com a ajuda de amigos, uma vez que se tratava de pequenas quantidades. Primeiro descamisavam as maçarocas, depois estas eram postas a secar e só depois se desgranavam. No fim o milho era posto em cobejões ao sol, nas ruas, a secar.
10 – Ceifas, acarreijas e malhas – Vinham muitas pessoas de fora, sobretudo do Campo, ajudar nas ceifas, sendo, normalmente, o trabalho feito por ajuste. Muitos eram os campos semeados de centeio. De trigo eram muito poucos. Nos finais dos anos cinquenta já apareceram as ceifeiras mecânicas. As acarreijas eram uma festa. Bem cedo saiam os carros de vacas carregar os molhos amontoados em relheiros nos campos.
Ao descarregarem a primeira carrada nas eiras servia-se a fatiguê, isto é, pão, queijo e chouricê, acompanhados de vinho. Ao fim da segunda carrada era o almoço – bacalhau desfiado com salada e vinho. À tarde, depois de outra carrada havia lugar a nova fatiguê. As malhas eram feitas ao mangual, com duas filas de homens compostas por uns seis de cada lado. Mais tarde, começaram a vir as malhadeiras mecânicas e até ceifeiras-debulhadoras. As pessoas entreajudavam-se a meter as fachas de centeio na malhadeira, outras a apanhar a palha, enfeixá-la e atá-la com nagalho que era estendido por uma criança e outras a atar as sacas com o cereal e arrumá-las. Ajudavam ainda a carregar os sacos com o grão levado para as tulhas e a transportar as fachas de palha para os palheiros ou para um quintal, onde era formado um relheiro. Era trabalho duro pelas praganas que se metiam no corpo e pela sujidade.
11 – Trabalho das vinhas – Quem tinha vinha tinha de começar pela poda em Março. Seguiam-se as cavas. Quando já haviam brotado as folhas e os rebentos procedia-se ao desmamoar dos rebentos. Assim que começavam a surgir os cachos era necessário proceder às caldas com o pulverizador, uma ou mais vezes, para combater o míldio. Com os cachos já maiores e a tomar pó (uma doença) era a altura de lhes deitar enxofre, por uma ou mais vezes, com enxofradeira ou tropilha.
Por vezes, tiravam-lhes a rama quando era demasiada para que os cachos apanhassem sol. Quando as uvas já se aproximavam de maduras, de dia as vinhas eram guardadas pelas crianças em férias escolares, de noite por alguém contratado. É que, como eram poucas, havia quem se tentasse a obter uvas sem cultivar vinha. Nos finais de Setembro, princípios de Outubro, eram as vindimas feitas por homens que carregavam os cestos para as dornas ou para o lagar e por mulheres que cortavam os cachos.
Seguia-se o esmagamento das uvas por homens descalços e, mais tarde, por esmagadeiras. O vinho começava a ferver e era necessário agitá-lo com rodos. O mosto era doce e agradável de beber, mas levava a muitas caganeiras. Só passados uns oito dias estaria pronto a ser transplantado para as pipas, que haviam sido previamente tratadas com muita água nos tampos para que as aduelas inchassem, tal como haviam feito com as dornas. Nas pipas colocavam-se mechas com enxofre a arder para tirar os maus cheiros e enxogavam-se (enxaguavam-se) com água, rodando as pipas. Metia-se depois o vinho nas pipas com cântaros de lata e a pipa ficava com o tampão aberto. Costumava-se meter nelas um pedaço grande de carne gorda e uma porção de grão de trigo para fortalecer o vinho, como diziam. Só quando o frio começava é que tapavam o tampão.
O vinho, de fraco teor alcoólico, estaria pronto para a prova e consumo em Janeiro. Entretanto, o engaço constituído pelas grainhas e pelos pés dos gachos (cachos) ainda com peles de uvas era guardado numa dorna coberto com rama de videira e cinza por cima. Ficava a repousar até Novembro, altura em que vinham uns homens com alambiques e faziam a aguardente.
Imaginem a trabalheira em vinhas sem poços, em que a água para caldas era transportada em cântaros colocados em andilhas sobre o dorso dos burros! Imaginem ainda a trabalheira com o transporte de sucessivas carradas de água da fonte pública para fazer inchar as pipas e dornas, que teimavam em perder a água por diversas fendas, em tempos em que não havia água canalizada!
Que trabalheira para depois poderem ter o prazer de beber uns copitos do seu vinho e poder convidar amigos ao pipo nos Domingos!
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