Nas décadas de 1960 e 1970 a emigração clandestina para França teve por principal palco a zona raiana do concelho do Sabugal, onde a fronteira se atravessava «a salto», usando os «serviços» de passadores experientes. Falamos agora do contrabando como prática arreigada no concelho e cuja experiência contribuiu para o êxito da emigração.
Contrabando
É certo que o contrabando se desenvolveu por toda a zona raiana do território nacional, «… Onde há raia há contrabando…», «…Desde que se formaram os estados, houve e haverá sempre pessoas que fogem ao pagamento dos impostos … A fuga aos direitos alfandegários também não escapa a esta espécie de fatalidade que é a evasão fiscal e é sempre nas áreas de fronteira onde, obviamente, ela acontece com maior incidência…».
Desde o estabelecimento das fronteiras entre Portugal e Espanha, existem referências à prática do contrabando. O fenómeno terá perdido a sua importância a partir de 1993, com o estabelecimento do Mercado Único Europeu.
Não pretendemos aqui fazer uma história do fenómeno a nível nacional. O intuito prende-se, sim, com a necessidade de explicar a forma como operavam as redes de contrabando na raia sabugalense, antes dos nos anos 60 do século XX, por forma a compreender como estas influenciaram a operação das redes de emigração clandestina, demonstrando que essas redes, na zona raiana do concelho do Sabugal, estão intimamente ligadas à forma como se praticava o contrabando que se verificou na mesma zona.
Os passadores usaram «…os mesmos métodos [dos contrabandistas] e também seguiam itinerários que eles improvisavam, conheciam a área e atravessavam as propriedades [referindo-se a trajetos em corta mato] … a maior parte [dos passadores] era pessoal do contrabando … era pessoal experiente na passagem, … conhecem … a zona onde pisam…»; no mesmo sentido, Vítor Pereira, refere que os estudos sobre o contrabando «… salientam a corrupção de alguns dos agentes da polícia e dos funcionários da alfândega e, por vezes, o seu conluio com as redes de passadores…». A mesma ideia é partilhada por José Manuel Nunes Campos, defendendo que o contrabandista também era o passador, que os mesmos itinerários do contrabando eram os mesmos itinerários da passagem de emigrantes clandestinos e que os locais de armazenamento dos produtos foram muitas vezes utilizados para dissimular emigrantes: «… está tudo no mesmo saco …», «… está tudo interligado, a emigração e o contrabando…», «… os caminhos eram sempre os mesmos… especialmente porque eles já tinham as coisas preparadas com pessoal de lá [espanhóis]… já tinham as coisas mais ou menos organizadas… com redes da Espanha… [os passadores] era quase tudo contrabandista [ operavam no contrabando e na emigração clandestina, consoante as necessidades]…».
No mesmo sentido, o coronel da GNR, Fernando dos Santos Afonso, anteriormente oficial da Guarda Fiscal, homem que possui uma experiência na área do contrabando, que dificilmente alguém poderá superar no Portugal atual, pelo menos ao nível do conhecimento da realidade do terreno, nas zonas de Vilar Formoso e Sabugal, onde desempenhou funções no corpo da GF, refere-nos que primeiro começou o contrabando, surgindo em seguida a emigração clandestina que adotou muitos dos procedimentos do contrabando e que com o terminar das redes de emigração clandestina, estas adaptaram-se novamente à prática do contrabando : «… as coisas cruzam-se … quando deixou de haver a emigração clandestina, os chamados passadores, converteram a sua atividade, muitos deles… em atividades ligadas ao contrabando… foi como … o contrabando tradicional que … nos anos 80, também se converteu… na passagem de droga e mantem-se hoje, já que o contrabando tradicional está praticamente terminado…».
As inférteis terras sabugalenses, o clima agreste e a deficitária industrialização do concelho do Sabugal, não permitiam uma sustentabilidade minimamente confortável das gentes Sabugalenses.
Ulisses Pires, antigo sargento-mor da Guarda Fiscal, tendo desempenhado funções em postos do concelho do Sabugal, nomeadamente na Aldeia da Ponte, com o posto de cabo e posteriormente, já nos anos 80, na qualidade de comandante do posto do Sabugal, homem raiano natural da freguesia da Aldeia Velha – Sabugal, profundo conhecedor da realidade social, económica, do contrabando e da emigração, na zona do Sabugal, refere «… Havia a mini agricultura, que era de sobrevivência e depois, à noite, ganhavam o deles [na atividade do contrabando] …era uma maneira de poder viver com mais facilidade…».
O contrabando abria assim uma possibilidade de prover o sustento das populações que a ele se dedicavam. Poucos eram os que conseguiam sustentar-se de outro modo e os que conseguiram, na sua maioria, também andaram no contrabando.
David Fuentes defende que a atividade do contrabando era a única solução para evitar a fome: «… vivíamos… com dificuldade,… tínhamos que andar no contrabando… aqui a gente vivia mais … do que… levávamos e trazíamos da Espanha… semeávamos qualquer coisinha para casa…».
A atividade do contrabando era vista como uma atividade eticamente e socialmente aceitável. A obrigação de um chefe de família era a de governar a sua prole, associado ao abandono que os poderes públicos «decretaram» sobre aquelas gentes, a necessidade fez com que a lei que vigorava fosse a «Lei Raiana» Infringir a lei nacional, não era condenável socialmente, «…Era assim por toda a raia. Ao cair da noite formavam-se os grupos, traçavam-se caminhos, vigiava-se a Guarda Fiscal e desaparecia-se no escuro para ganhar a vida. A agricultura não dava e era necessário sustentar a família…», «…A aceitação moral do contrabando é unânime nas aldeias mais próximas da raia e o facto de terem sido abertas as fronteiras, … não fez mais do que dar-lhes razão…».
Transporta-se, ainda que provavelmente de forma inconsciente, o normativo legal que determina a aplicação da lei mais favorável para o arguido, legitimando-se assim, no espírito do homem raiano, a atividade do contrabando como atividade socialmente aceitável. Será oportuno referir que, em muitas das entrevistas realizadas não só a contrabandistas, mas também a guardas-fiscais, se referem a atividade do contrabando como trabalho, nunca ninguém referindo expressões menos aceitáveis, quer socialmente, quer penalmente.
Acrescido a isto, aliava-se o facto de muitos guardas-fiscais terem sido contrabandistas antes de ingressarem na força e muitos se dedicarem ao contrabando, a par da atividade pública.
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«Emigração Clandestina», tese de mestrado de Rui Paiva
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