Desavença com o recluso Quintão na prisão de Caxias. O Espanhol que não sabia ler português. Visita a Monsenhor Ruas, que lhe traça limites. FIM dos registos no Diário
18 de Junho de 1955
Quintão, preso em Caxias, recebe livros emprestados pela Acção Vicentina para se formar pela leitura. Mas há muito que não os devolve, o que me obrigou a pedir-lhe satisfações.
– Entreguei os livros ao 38, disse-me.
– Quem é o 38? Como se chama?
– Não me lembro, respondeu com desdém.
Fui perguntar ao chefe da ala quem era o 38, informando-me que era o Espanhol, pois assim lhe chamavam os presos. Logo me admirei como é que um espanhol lia livros em português, pois eles pouco ou nada percebem da nossa língua. E isso mesmo confirmou o chefe da ala com o dito Espanhol que o informou nunca ter recebido qualquer livro das mãos de Quintão.
Pedi para voltar a falar com Quintão, o que me foi negado.
20 de Junho de 1955
Voltei a Caxias para falar com Quintão. Confrontei-o com as suas mentiras e com o desaparecimento dos livros.
– Não me venha chatear. Ora não querem ver que este beato me vem desassossegar por causa de uns folhetos de missa? Disse-me o preso com ares de mofa e desprezo.
Conclui que o desalmado trocara os livros por cigarros, certamente com um guarda da prisão.
– Por favor, façam este intruso sair daqui. Ele mete-se nas cadeias com beatices, corrompe as pessoas e tirar-lhes a sanidade mental, disse Quintão dirigindo-se ao chefe da ala.
E fui mesmo corrido para fora da prisão. Com isto se cometeram duas faltas gravíssimas: enxovalharam um vicentino perante os presos e deram força a um ladrão que mesmo preso pratica toda a ordem de patifarias como a de roubar o que não é seu.
21 de Junho de 1955
Dirigi-me a casa de Monsenhor Ruas para o colocar ao corrente do que se passava nas cadeias, onde impediam os vicentinos de exercer a sua missão de assistência aos presos.
Recebeu-me no átrio, como se fosse um mendigo que ali se dirigira demandando esmola.
– O que quer? Tenho assuntos urgentes a tratar, pelo que deve ser breve, disse-me com ar severo.
Expliquei-lhe o caso de um recluso que se intitula de muito culto, alegando frequência de um curso superior, e que nas sessões de assistência me interrompe constantemente emendando o que eu digo e afirmando que o demónio era apenas uma figura simbólica da Bíblia e que a Graça não é um dom sobrenatural. Depois falei-lhe também no caso de Quintão que trocou os livros emprestados por cigarros, me chamou beato e intruja e sugeriu que eu fosse expulso da prisão, o que de facto sucedeu.
O javardo do Monsenhor, que não merece outro nome, teve o desplante de me dizer, olhando-me nos olhos:
– As informações que me chegam dão conta de que é o senhor que anda a promover intrigas nas cadeias, deixando mal a Acção Vicentina. Ainda bem que resolveu visitar-me que assim me tirou o trabalho de ter de o chamar para lhe transmitir que deve deixar de ir às prisões prestar assistência. Assim conseguiremos diminuir os estragos que causou e voltar a recuperar a imagem dos vicentinos perante os reclusos e os funcionários das cadeias, podendo continuar a missão de assistência a que esta ordem religiosa se vem propondo.
Isto demonstra tramóia!
Já nos primeiros dias da minha missão no Limoeiro Monsenhor Ruas me dissera que a minha missão como vicentino se deveria ficar pelo tratamento de certidões para casamentos e baptizados, porque para ensinar lá estava ele mais os seus principais auxiliares.
Monsenhor Ruas revela ser um perfeito sacana, que afinal odeia os vicentinos a quem declara guerra aberta.
Acabaram aqui os registos no Diário de Joaquim Salatra.
:: ::
«Diário de Joaquim Salatra», por Paulo Leitão Batista
Leave a Reply