Dado como mentalmente incapaz para o serviço, Joaquim Salatra foi afastado da Caixa Geral de Depósitos e passou a dedicar-se à obra de S. Vicente de Paula, a que pertencia. A sua «acção vicentina» desenvolve-se na assistência aos proscritos, levando-lhes a mensagem fraternal cristã.
29 de Março de 1955
Na Prisão de Caxias assisti à comunhão pascal dos reclusos. Muitos comungaram pela primeira vez graças ao trabalho de conversão em que tenho colaborado enquanto vicentino.
Eu não podia faltar a esta festa tão comovedora e espiritual. Estive na cadeia desde as 8 horas da manhã até às 4 da tarde.
No regresso o diabo não podia ficar indiferente e fez-me uma partida de ódio e vingança pelo doce fruto que eu ali fora dar. O guarda-freio do carro eléctrico que vinha de Belém para o Largo do Chile comportou-se como um possesso danado. O maldito, julgando que me metera no carro para viajar sem bilhete, começou a insultar-me e a dizer que chamava a polícia. Foi uma comédia escandalosa.
Farto de o ouvir, e não estando para lhe partir a cara, resolvi abandonar o carro. Mas o condutor, tirou-me o chapéu e ficou com ele. Arranjou um chapéu de graça, sem gastar dinheiro para o adquirir. Fez o que lhe convinha e talvez fosse até para isso que provocou a desavença comigo.
Ou o maldito guarda-freio era da Rua de Arroios, e aí estava tudo explicado, ou então era possesso do diabo, pois este não estava nada satisfeito com o meu trabalho no apoio aos presos.
31 de Março de 1955
O Reverendo Padre Baltazar interessou-se por um preso de Caxias que estava inocente e requereu a revisão do respectivo processo. Pelo facto de ser um padre a interessar-se por um preso, este foi novamente julgado e a pena foi-lhe aumentada em mais dois anos de cadeia.
Mas padre Baltazar não se conformou e requereu nova revisão por ter a certeza que o homem estava inocente. Foi então julgado pela terceira vez e veio agora publicada nos jornais a sua inocência e a consequente absolvição.
Claro que se fosse um maçon a interessar-se pelo caso, o preso seria considerado inocente logo na primeira revisão.
Na verdade só vão para a cadeia os que dão rendimento à polícia e aos comilões da iniquidade.
19 de Abril de 1955
No Sector F da prisão de Caxias, dizia um preso que ali apelidam de Barrabás:
– Há muitas religiões, pois Deus é caprichoso e quer ser adorado de diferentes maneiras.
Irritei-me com a estupidez deste lorpa que queria mostrar inteligência, e reagi:
– Saiba que por vontade de Deus só há uma religião. O resto são desordeiros que semeiam a discórdia entre os homens.
– Mas quem fez discórdias senão os católicos com a criação da criminosa Inquisição? Voltou o lorpa.
– Saiba que os protestantes é que promovem discórdias, sobretudo no Brasil onde são constantes. E quanto à Inquisição, diga lá quem é que matou quem.
– Quem matou foi a Igreja. A história o diz!
– Eu pergunto-lhe quem foram as pessoas que mataram outras pessoas. Diga os nomes.
– Foram os padres.
– Mas diga então o nome deles. Ao menos nomeie um dos assassinos.
Calou-se porque afinal nada sabia e eu afastei-me para não ouvir mais velhacarias.
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«Diário de Joaquim Salatra», por Paulo Leitão Batista
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