São tantas e tais as mudanças na vida das gentes do Interior, especialmente da Raia e mormente em Quadrazais, que vale a pena recordar como era a vida em Quadrazais nos primeiros sessenta anos do século passado e estabelecer uma comparação com os anos que se seguiram, sobretudo os actuais.

IV – A vida no dia-a-dia – necessidades e afazeres
8 – A alimentação – A base da alimentação do quadrazenho era a batata, feijões, couves, o centeio, a castanha, o queijo e a carne de porco. A mesa era parca e pouco variada. Só nos dias de festa havia cabrito ou borrego, seguido de arroz doce ou aletria. A refeição principal era o almoço (pequeno almoço das cidades) logo pela manhã, antes de partirem para o trabalho. Comiam castanhas cozidas ou assadas no tempo delas, um caldo suculento de batatas, pão, queijo e carne gorda ou enchido. Pelo meio-dia jantavam (almoçavam) a seco, isto é, comiam pão com queijo ou enchido, regado com vinho. Por vezes levavam de casa caldo ou bacalhau desfiado.
No Verão merendavam por volta das cinco horas. Era uma pequena refeição de pão e enchido com uma pinga. Ceavam pelas nove ou dez horas no Verão e oito ou nove no Inverno um caldo de batatas ou feijões, um prato de feijões e pão com queijo ou enchido. A fruta raramente entrava na refeição, embora, por vezes, a comessem durante o dia. No tempo das malhas comiam cinco refeições. Pelas 11 horas da manhã comiam a fatiguê – uma salada de bacalhau, trigo e vinho ao chegar a primeira carrada do pão. Com a porta da França variaram a comida.
Passou a comer-se mais carne e peixe e até o marisco entrou nos hábitos alimentares de vez em quando.
9 – O vestuário – O traje típico do quadrazenho há muito que deixou de usar-se. Passou a usar-se apenas no Entrudo. O feminino parece importado do Minho, o masculino de Trás-os-Montes ou do pastor da serra da Estrela. O feminino era uma saia rodada, encarnada ou preta, com bordados, uma algibeira do lado esquerdo, uma blusa branca, cordões de ouro ao pescoço, um manto de seda com franjinha de variadas cores a cair pelos ombros e um caixené atado no alto da cabeça, todo enramado.
Os homens vestiam calça preta apertada ao fundo, caturnos brancos de lã, colete preto e chapéu de abas largas. De homem já não conheci nenhum fato completo. O vestuário do dia-a-dia era diferente. A mulher vestia camisa de linho, um ou mais saiotes de flanela, um colete, conforme o frio, uma saia rodada até abaixo dos joelhos, um corpete, uma blusa, um lenço atado no alto da cabeça e um abantal (avental) por cima da saia.
Nos pés calçava umas meias de algodão e umas sandálias espanholas no Verão ou tamancos no Inverno. Por cima um manto de franjinha no Verão ou um manto preto de lã grosso no Inverno. Algumas mulheres mais velhas ainda usavam um casaco de pana espanhola.
Os homens usavam calça de pana espanhola com casaco também de pana, por cima de camisa. Como roupa interior usavam uma camisola interior e umas ciroilas (ceroulas) de linho. Nos pés usavam caturnos de algodão e umas botas ou tamancos no Inverno. Os crescidos usavam sapatos, botas ou tamancos. As botas e tamancos untavam-se com sebo para durarem mais. Levavam tombas várias vezes. Quando velhos, aproveitavam-se para tamancos. No Verão calçavam alpragatas espanholas. Na cabeça usavam um chapéu preto ou uma boina basca. Já pelo fim da minha infância, os homens e mulheres vestiam quase como nas cidades. Fazer na meia e camisolas-sobretudo nos dias de inverno, à soalheira, ou nas noites de Inverno, as mulheres faziam caturnos para o marido e filhos, bem como alguma camisola para os mesmos e para si-próprias. Havia quase uma competição entre elas para ver quem fazia melhor. As raparigas solteiras faziam os caturnos às amêndoas para os namorados calçarem no dia da Inspecção.
Os meninos usavam calças com um buraco no rabo – a cueda. Não havia dinheiro para fraldas. Nem sei se já existiam. Uma racha no traseiro e ao menino bastava baixar-se e aí vai disto. Limpar o rabo? Só quando a mãe o lavasse. Os crescidos usavam calças que eram remendadas com cuedas e joelheiras. Quando velhas serviam para cobejões.
Lavagem da roupa – pequenas peças lavavam-nas num banho (grande alguidar) em casa. Lençóis e outra roupa maior iam lavá-la à ribeira (o Côa), salvo alguém que tinha algum tanque no seu quintal. No Lameirão da Ribeira tinham boa relva espaçosa e paredes para estender a roupa. Mas também lavavam em outros ribeiros, na tapada da Srª Albertina ou até mesmo no Vale, entancando a água que vinha de cima.
10 – Transportes – As pessoas iam de burro ao Sabugal, Soito ou outras terras vizinhas. Só o ti Barreiro tinha um Ford antigo que servia de táxi. O Simão Nano teve uma carrinha velha, a que chamávamos a caixa dos palitos. Em 1955 começou a carreira da empresa Transportes do Zêzere. O burro carregava ainda taleigas para o munho, quatro cântaros com água nas andilhas, ferrã, lenha e outras coisas e o Tátão transportava no seu dorso duas caixas de sardinha desde o Sabugal. Com os laços carregava um saco de cada lado, sendo os laços apertados com o arrocho. Alguns tinham cavalo para o mesmo serviço e para viajar. A carroça puxada por um macho, era transporte usado na ambulância, tal como o cavalo.
11 – Vida nas quintas – O Alcambar tinha 13 casas, na maioria habitadas; Vale da Ussa com 9 casas, apenas 2 habitadas; havia mais 21 casas espalhadas por outras quintas, na sua maioria desabitadas.
12 – Compras diárias – Chegou a haver 5 comércios, autênticas drogarias onde se comprava tudo. O do ti Barreiro era o maior. O do ti Saloio e o da ti Pinheirinha completavam o trio da minha infância. A bebida comprava-se nas tabernas. Chegou a haver 9 tabernas.
13 – A instrução e o modo de falar – Desde 1856 que existe escola primária masculina. A feminina veio alguns anos depois. Tinham grande frequência. No meu ano fomos fazer exame da 4.ª classe ao Sabugal 24 rapazes. Raparigas não sei quantas eram. Ao todo a escola tinha três salas, mas ainda tinham alugada a casa do Gé Carvalha ao Eiró, como escola. O modo de falar era semelhante ao de Riba-Côa, com algumas palavras só quadrazenhas, como tive ocasião de escrever neste jornal em 2014. Típico da fala quadrazenha é a transformação em ê do a quando precedido da vogal i e noutras circunstâncias que expliquei aqui no Capeia Arraiana. O quadrazenho tem ainda uma Gíria própria – a Gíria Quadrazenha, que também publiquei no mesmo jornal. Passe a publicidade, mas quem quiser conhecer em pormenor a maneira de falar de Quadrazais pode adquirir os meus livros: Quadrazais-Etnografia e Linguagem ou os 4 volumes da minha obra – Para que não se Perca a Memória de 400 Anos de Vida em Quadrazais.
14 – Superstições e Crenças – As noites escuras, sem ruas iluminadas, davam azo a crenças e visões de lobesomes (lobisomens) e bruxas.
– Os homens transformavam-se no bicho que passasse – cão, burro ou outro, e entravam nas casas que tivessem luz e esfarrapavam tudo o que lá encontrassem, fosse de mães, pais ou de outras pessoas. Picavam-lhe com um garfo de três dentes no pescoço e o homem-lobesome dizia: Muito obrigado! Enquanto não deitasse três pintas de sangue, urrava como um boi. Escravava como um animal nas esquinas, aidros e terreiros onde houvesse cruzes.
– Se passasse alguém por uma pessoa que tinham por bruxa, diziam: Se tu és bruxa, eu sou d’aço. Se tu és bruxa, eu t’embaço.
– De noite as bruxas transformavam-se em galinhas, porcos, cães ou outros animais, mas, geralmente, numa galinha preta.
– Em cantando o galo romão, galo preto com a crista drubada (dobrada), já não havia medo.
– As bruxas traçavam a roupa, embruxavam as pessoas, pondo-as doentes. Podiam entrar com os animais, matando-os.
Dizem que certo dia ia um pastor para o bardo e viu-se apertado com as bruxas às gargalhadas. Ele só via uns pássaros pretos, como corvos e dizia-lhes: Ah! putas!
Elas punham-se às gargalhadas. O pastor deitou então as calças abaixo e elas transformaram-se em pessoas que ele conheceu.
Quando as bruxas queriam passar o ofício de bruxa a outra pessoa, diziam:
Deixo, deixo, deixo
O novelo e o begueixo.
– Se se encontrava uma maçaroca de milho preto devia guardar-se, por ser boa contra o bicho.
– Quando um raio incendiava uma árvore, guardavam-se as cavacas queimadas para não cair outro em casa.
– Guardavam o tição do madeiro do Natal para não entrar nada ruim em casa.
– Quem fizesse almieiras à noite, mijava a cama.
– Dá sorte ter uma pita galeria (que canta como um galo).
– Se tivessem uma ferradura em casa já lá não entravam as bruxas.
– Varrer a casa na Quinta ou Sexta-Feira Santa dava má sorte.
– Ter cornos de borrego preto em casa dava boa sorte.
– Nas Terças e Sextas não deviam seguir viagem, pois Deus daria má sorte, por serem dias de bruxas.
– Quando o lume fufava estavam a dizer mal das pessoas da casa.
– Quando aquecia a orelha esquerda alguém estaria a dizer mal da pessoa. Se aquecesse a direita, estavam a dizer bem.
– Se uma mulher estivesse prenha, deitavam castanhas flercas com cuspo para o lume por conta dela. Se estoirasse, nasceria menino. Se fufasse, seria menina.
– Se uma pessoa estivesse com soluços, dizia que havia mijado a fralda.
– Se um homem andasse com a breguilha aberta, perguntavam-lhe: É Sábado ou dia de pagamento?
– Quando os miúdos iam fazer as necessidades, estendiam os braços até não se tocarem, para não se pegar o sangue.
– Não se podia passar em cima do local onde um burro se havia espojado e dado cambalhotas, pois podia apanhar-se uma trilhadura.
– Quando encontravam uma folha de castanheiro como se tivesse sido bordada, diziam ter sido os passarinhos a escrevê-la.
– Se o lume chiasse, era preciso cuspir sobre ele porque eram as bruxas que estavam a dizer mal.
– Ao peneirarem, diziam: Minha peneira a peneirar, gira-te, torna-te a virar para me dares sorte. Vira-te para a direita, se me queres bem; para a esquerda, se me queres mal.
– Quando se sonhava 3 noites seguidas com um tesouro, iam lá dar nele.
Eram talhas e panelas com dinheiro em ouro. Daí que, uma vez, desmancharam a Fonte D. João toda e carregaram cavalos fosse do que fosse.
No tempo do ti Serafim, na Malhada Vaca, apareceu lá uma sepultura com muito dinheiro, que foram trocar a Lisboa. Foi a partir daí que começou a arraibar a vida. Ele zangava-se quando lhe falavam nisso.
O ti Baldinho achou um sino d’oiro.
No Barroco do Guizo também se diz que havia dois sinos d’oiro.
– Dizia-se que aparecia a pastar no lameiro do Sr. Zezinho uma égua d’oiro.
– Dizia-se que apareciam moiras encalapachas (nuas), carregadas de oiro com uma bengala. Quem tivesse ânimos, baptizava-as, dizendo: Eu te baptizo, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo! Elas davam-lhe toda a sua riqueza. Mas se lhes deixavam dar um beijo na boca, a pessoa ficava moira.
– Se alguma rapariga pretendia cativar um rapaz para não a largar, dava-lhe uma bebida – sangue da sua menstruação misturado no café, chá ou no vinho.
– Quando chovia e fazia sol ao mesmo tempo, diziam:
Está a chover e a nevar
E a raposa no lagar
A lavar os cueirinhos
Para amanhã se casar.
– Pela lua nova diziam:
Ó lua, tu bem me vês.
Dá-me dinheiro para todo o mês.
Bôs (bons) olhos te vejam
Mai do ca (que) t’enxerguem.
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