São tantas e tais as mudanças na vida das gentes do Interior, especialmente da Raia e mormente em Quadrazais, que vale a pena recordar como era a vida em Quadrazais nos primeiros sessenta anos do século passado e estabelecer uma comparação com os anos que se seguiram, sobretudo os actuais.

IV – A vida no dia-a-dia – necessidades e afazeres
1 – Indústrias caseiras – Antes mesmo de eu ter nascido, houve três fábricas de sabão. Havia três fráuguas – a do Sr. Mateus, a do Armando Ferreiro e a do Magildro, onde se consertavam ganchos, enxadas ou outros utensílios agrícolas ou se ferravam burros e cavalos.
Em tempos idos houve teares. Na minha infância já tinham desaparecido e já não semeavam linho.
– Fabrico do queijo – quem tinha gado ordenhava as cabras e fazia queijos. A maioria era para consumo próprio. Havia queijeiras de Vale de Espinho que os vendiam em Quadrazais. Os quadrazenhos também se abasteciam de queijos nos mercados. Ovelhas não eram ordenhadas. Vacas não havia. A partir de 1974 o Sordo e não sei se mais alguém criavam vacas para leite que vendiam a pessoas de fora, que o vinham recolher. Mas não faziam queijos de leite de vaca.
– Fabrico do pão – Quase todas as famílias coziam pão num dos fornos com regularidade. Quando não tinham grão, ou não queriam ter esse trabalho, compravam o pão a uma das várias padeiras padeiras existentes em Quadrazais, ao arrate.
– Fabrico do vinho e aguardente – Eram poucas as vinhas na aldeia e de pequena dimensão. Usavam as uvas para fabrico de vinho para consumo caseiro, sendo de fraco grau. Alguns entregavam parte ou a totalidade da colheita das uvas à Adega Cooperativa das Peladas (Colónia Agrícola de Martim Rei). Até que esta fechou. Com o engaço das uvas faziam aguardente. Pagavam a quem se dedicava a fazê-la com caldeiras e alambique. Também servia para consumo caseiro, embora alguns vendessem uns litros aos taberneiros. A aguardente era apreciada para beber com castanhas assadas. No primeiro de Janeiro era oferecida a moços e graúdos que iam dar as Boas-Festas logo pela manhã aos que a tinham.
– Fabrico de albardas – era o Geraldo, da Miuzela, que fabricava as albardas para os burros e cavalos.
– Fabrico de crivos e peneiras – era o Tó Presas que os fazia.
– Os munhos (moínhos) – Na minha infância funcionavam seis, aproveitando a água do Côa. Os moleiros eram, em geral, de fora da terra. Moíam grão de centeio(pão), de trigo ou de milho.
– O fabrico de carvão – Nos anos cinquenta já poucos o faziam. Mas ainda me lembro de minha avó o mandar fazer ao Alcambar com a lenha da sua malhada. Eram sobretudo malcatenhos (fornicos) quem se dedicava a essa tarefa.
2 – Criação de galinhas – para ovos e consumo caseiro, embora houvesse quem vendesse uns ovos ou mesmo um galo. Quem não tinha curral deixava-as andar soltas pelas ruas. Quando uma mulher tinha uma criança, matava-se um galo. Quando tinham pintos era preciso estar atentos não viesse a doninha chupar-lhes o sangue, ou o milhano apanhá-los. Por isso, os vizinhos ajudavam, informando dos perigos. À tardinha era necessário empoleirá-las, à voz de «acacha, acacha!», até se meterem todas por um buraco da porta da loije ou por um buraco na parede que, por uma tábua em rampa, levava ao poleiro. Um ou outro criava uns patos, perús ou até gansos.
3 – Criação de porcos – muita gente criava um porco para se alimentar durante o ano. Quem não tinha curral ou quintal deixava-o andar solto pelas ruas da aldeia.
4 – Criação de coelhos – havia algumas pessoas que os criavam para consumo próprio.
5 – Criação de gado ovino e caprino – havia bastantes pastores que criavam gado, embora vários de entre eles criassem gado de outros proprietários.
6 – A casa e seus apetrechos – A casa era, em gera, rasteira, com as paredes de xisto sem cal, muitas vezes forrada a papel por dentro. O chão era coberto de tábuas ou de lajes ou até mesmo de terra batida. Ao lado dos moradores viviam as galinhas, burro e cabras. A um canto o monte da lenha para a lareira que aqueceria aquela pobre casa. Esta compunha-se de uma cozinha relativamente espaçosa, que servia de sala de estar e de jantar, sendo, pois, a divisão principal. Separavam-na de um ou dois quartos uma parede de ripas, com cortinados de pano a servir de porta.
A lareira tinha uma pedra de cantaria a todo o comprimento – o moirão, por trás do qual ficava uma cavidade na parede – a pilheira, onde se lançavam as cinzas. Do tecto pendiam umas cadeias para dependurar as panelas de ferro, onde faziam a comida. A um lado do moirão havia um banco comprido para se sentarem, do outro o escano, espécie de cómoda onde guardavam os alimentos e os utensílios da cozinha. Por cima ficava o caniço para secar as castanhas, alimento base de Quadrazais. Por vezes, escavado na parede, havia um nicho para a almotolia e a candeia. A casa não tinha cheminé, pelo que se tornava muito fumarenta. Apenas uma fresta no tecto com duas telhas inclinadas deixava sair o fumo. Não havia forro entre o telhado e o lar. O telhado era de uma só água nas casas mais pequenas e de duas nas maiores, com telhas antigas de cano. Muitas vezes colocavam umas pedras grandes sobre as telhas de caleiro para impedir que o vento as levasse. Havia apenas uma ou duas janelos. Sobre a cozinha havia duas ou três telhas de vidro. Uma candeia a petróleo dava a claridade suficiente para passar o serão. A porta, em castanho, tinha um postigo e, em baixo, uma gateira. Para além da fechadura, usada à noite, havia uma caravelha ou uma aldrava.
As casas dos lavradores eram maiores e mais modernas, de baixos (a loije) para os animais, alfaias agrícolas, arca do pão e lenha, e altos para os moradores, embora também não fosse caiada. Subia-se para os altos por uma escaleira em pedra de cantaria com um ou dois patamares, sendo o último ladeado por duas grandes pedras de cantaria- as guardas. Havia soalho e forro. O escano fora substituído por um móvel e havia cheminé.
Os quartos eram separados da cozinha por grandes tábuas de castanho. À entrada havia a um canto uma cantareira com os cântaros da água e a loiça e no outro canto a mala da roupa. Num quartinho guardavam a arca da carne da matança, a talha das azeitonas e o pote do azeite. A casa assentava numa culmeeira, grande tronco de carvalho, sobre o qual assentavam largas tábuas de castanho. Nas mais recentes já eram de pinho. Já tinham uma ou duas janelas de vidraça que iluminavam a sala.
A cozinha era iluminada pela porta exterior, que ficava aberta. Nessas janelas, no exterior havia umas pedras salientes, onde colocavam vasos ou caldeiros velhos com majaricos (manjericos) ou cravos. Por cima dos forros dos quartos guardavam cebolas, caldeiras e outros objectos. Na cozinha, para além do banco, havia mesas e mesinhas de três pés em carvalho para se sentarem. Cadeiras eram objectos de luxo, só usadas para as visitas. A casa comunicava muitas vezes com um palheiro onde se guardava a comida dos animais e o reforço da lenha. Outras vezes o palheiro ficava afastado da habitação e nele guardava-se também o pipo do vinho de quem tinha vinha.
Nas casas mais antigas existia ainda um triato, constituído por alguns barrotes que iam das guardas à parede do curral, sobre o qual guardavam a lenha. A telha já era Marselha. O telhado era sustentado por uma trave de carvalho ou pinheiro ao meio, onde assentava a tesoura.
Em frente da casa havia um curral onde se curtia palha para estrume, se fazia a estrumeira com o estrume da loije e onde se guardavam os arados, grades, carro das vacas, outros utensílios da lavoura e lenha e se fazia o cortelho do marrano, debaixo da escaleira. Este, por vezes, andava à solta na loije, junto com as vacas e burro e de dia andava à solta pelas ruas, tal como as galinhas. Para estas existia ainda um buraco na parede- o poleiro, junto à escaleira.
Claro que os mais ricos-comerciantes e negociantes tinham casa melhor. De dois pisos como a dos lavradores, mas já caiada, com janelas de vidraças, sendo o interior dividido em compartimentos por paredes de ripa, argamassa e cal. A cozinha já não tinha o escano volumoso. No lado oposto à cantareira havia um pequeno almário (armário) onde guardavam a comida, a almotolia e as panelas. Era na cozinha que tomavam as refeições, excepto se havia visitas, que comiam na sala.
Normalmente estas casas tinham um quintal para cultivo de hortaliças e um curral em frente com ou sem cabanal para guardar a lenha, como na casa do lavrador.
Fragar a casa – Ia-se à fonte com quatro cântaros de lata em cima de um burro, numas andilhas, ou à cabeça, um cântaro de cada vez, de lata ou de barro, se não tinham burro. Só com a canalização da água nos anos 70 se tornou esta tarefa mais suave.
7 – Iluminação – em casa, ao serão, usavam uma candeia a azeite ou a petróleo. Para irem à loje ou ao palheiro levavam uma lanterna a azeite. Nos quartos ou na sala usavam um candeeiro com manga a petróleo. Só em 1961 foi levada para Quadrazais a luz eléctrica e tudo mudou.
Mudaram de hábitos com:
– compra de aparelhos de rádio e televisão – o mundo rural começou a adoptar os costumes das cidades, aproximou-se dos citadinos na linguagem, nos hábitos alimentares(com a compra de frigoríficos) e de higiene (com a publicidade dos diversos detergentes);
– compra de electrodomésticos vários: motores eléctricos – que tiravam a água dos poços, aligeirando a dureza do trabalho e levando a água para casa. O mesmo aconteceu com a feitura de furos para consumo de água e para regas;
– a iluminação eléctrica das ruas acabou com as visões de bruxas, lobesomes e outros medos de fantasmas e ainda as esperas às esquinas para ajustes de contas.
A introdução do gás doméstico mais ou menos pela mesma altura evitou o acender das lareiras em tempo de pouco frio para a confecção de alimentos, tornando as casas mais higiénicas e as refeições mais rápidas e mais variadas. As panelas de ferro e as cadeias deram lugar às panelas e tachos de alumínio ou porcelana.
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