Acto comum noutras terras andarem os alfaiates e sapateiros de cliente em cliente em trabalho a dia, em Quadrazais só a Glória do Ganito trabalhava por dia na sua arte.

Carregava com a sua máquina de casa em casa de quem a chamava por dia, a de comer, isto é, com almoço e merenda incluídos.
Este trabalho era mais no Inverno, já que no Verão havia muito que fazer no campo a clamar pelos donos. Eram formigas no Verão para arranjar comida para o Inverno. Mas, em questão de roupa, a formiga armazenava no Inverno para o Verão.
No Inverno, para além do lume da lareira, punha-se a braseira com borralho de vides no meio da cozinha e dona da casa e costureira sentavam-se à sua volta. É que o frio apertava e a neve caía lá fora!
Era como dia de festa. Esmeravam-se as quadrazenhas em cada qual ser a melhor a receber a costureira. Seria uma vergonha ela ir dizer no dia seguinte em casa de nova cliente que fulana a tinha tratado mal, isto é, sem um mimo.
E vá de fazer filhoses, arroz doce, fofas, aletria e boa comida, como se fosse Natal!
Minha mãe tinha máquina de costura e lá se ajeitava a fazer-nos a roupa e também a dela. As camisas é que eram o seu busílis. Não se atrevia. E vá de chamar a ti Glória do Ganito, que tinha fama de boa costureira.
Não sei onde aprendeu ou se, com a necessidade a obrigar, conseguiu atrever-se a fazer camisas de homem. Metro não era preciso. O colarinho era a palmo. Como a palmo eram as medidas do corpo, copiadas por outra camisa. E lá saía uma camisa que, sem o requinte das da loja, servia perfeitamente.
A Senhora Marquinhas do Sr. Arménio também fazia trabalho de costura, mas por encomenda e em sua casa. Só se deslocava a nossa casa, por ser amiga de minha mãe. Esta já usava uma fita métrica e não o palmo, pois aprendera a costurar lá por Cascais ou Ericeira e era Senhora.
Padeiras havia muitas, umas de pão centeio, outras de trigo, conforme discriminei na página 52 do 1.º volume do meu livro sobre Quadrazais. Costureiras, só me lembro da ti Glória do Ganito e da Senhora Marquinhas. Os arquivos paroquiais, de 1900 a 1965, só mencionam duas costureiras, enquanto no século XIX mencionam quatro.
O marido da ti Glória, que com ela casara em segundas núpcias após a morte da primeira, irmã da segunda, guardava gado com os rapazes, sempre carregado de campainhas e barbilhos na Primavera, quando já era preciso desmamar os chibinhos e habituá-los a comer como as mães.
As filhas iam por dia e ela por dia andava com a sua máquina, que era preciso alimentar sete bocas, para além da dela e do marido. Dos filhos, o mais velho ia ajudando a casa com o produto de algum carrego que levava ou trazia de Espanha.
O seguinte, já falecido, ainda andava na escola e lá ia ajudando o pai na guarda do gado quando este pegava nalgum carrego para ou de Espanha.
Eram muitas bocas, mas também já eram muitos a ganhar para a casa.
Abriu-se a porta da França e aí vão filhas e filhos, que pai e mãe já eram velhos para os seguirem.
A ti Glória ainda viveu largos anos agarrada à sua máquina, até que lhe chegou a vez e embarcou na barca de Caronte para a travessia do Lago Estígio. Não deve ter tido dificuldade em pagar a passagem ao barqueiro Ermou, já que a actividade de costureira deve ter-lhe proporcionado amealhar algumas moedas para este transe.
Notas
Barbilho – espécie de freio em verga para impedir os cabritos de mamar.
Filhoses – filhós.
Fôfas – farófias.
Um artigo muito bem feito. Os meus parabéns.