Cartas imaginárias do Partido Comunista dirigidas à oficina de cromagem da Rua de Arroios, encorajando à perseguição ao beato jesuíta que ali mora.
Após cinco meses sem registos no Diário, Salatra imagina que transcreve cartas…
4 de Dezembro de 1950
Carta que o Partido Comunista escreveu ao dono da oficina de cromagem da Rua de Arroios, um crápula que passa pela fama de «bom patrão»:
Camarada,
Está a chegar a hora da libertação. Vamos livrar-nos de todos os jesuítas.
O camarada já há muito que colabora connosco, mandando os seus operários insultar o hipócrita que aí passa. Continuem e não tenham medo. Se alguém vos pedir contas, digam que é maluco e que mata a mulher à fome. Os malucos servem para divertimento. Da Polícia dessa esquadra nada há a recear, porque está do nosso lado.
O nosso camarada Estaline está também do nosso lado.
Derrotado o capitalismo teremos a nossa hora! Não pagareis mais para o desemprego, nem para os chamados sindicatos, nem para os grémios. Nessa rua temos muitos filiados nossos, prontos para a primeira hora.
Abaixo com os jesuítas e com os beatos. Viva a liberdade. Abaixo com os grémios, com os sindicatos vendidos, com a Legião e os legionários. Viva o camarada da Polícia dessa área. Vivam também os ardinas, que têm desempenhado um importante papel.
8 de Dezembro de 1950
Outra carta vergonhosa que prova a perseguição que me move o Partido Comunista, em comunhão com o dono e os operários da oficina de cromagem, os polícias e os ardinas para me destruírem.
Camarada,
Felicitamo-lo pelo excelente trabalho que tem realizado e oferecemos-lhe os nossos préstimos. Mora nessa rua um acérrimo inimigo da nossa causa. Sabemos que os operários o insultam sempre que o vêem passar. Esse patife é um fanático defensor dos padres, dos jesuítas, do Salazar, do Carmona, do patriarca e de todos os nossos mais encarniçados inimigos, que a toda a hora congeminam para nos liquidarem. Por isso esse homem perigoso é a nossa sombra negra. Não esmoreçam e preparem-lhe a cama. Insultem-no com redobrado entusiasmo, sem medo, porque os chefes de esquadra dessa área são nossos camaradas e estarão sempre a vosso lado. Se alguém vos chamar à ordem digam que ele é maluco e que mata a mulher à fome.
Nessa esquadra a policia tem-lhe uma sede!!! Mas não o podem prender sem provas que fundamentem. Insultem-no até que ele se vire a um de vós e depois digam que o aleijou. Saltem-lhe então em cima e chamem a Polícia para o prender. Se houver testemunhas a favor dele, a Polícia dá-lhe quatro cacetadas na cabeça e ficarão do nosso lado. Digam sempre que ele é que provocou.
Os ardinas têm desempenhado um papel brilhante. Ensaiados pelos polícias de Arroios, que têm despendido com eles grossas quantias em gorjetas. Os ardinas ensaiaram depois outros, e toda a gente o tem insultado em todo o lado por onde ele passa. Até há escritos contra ele na maior parte das retretes públicas da cidade.
Quando ele recorre à Polícia é uma risada na esquadra. Chamam-lhe maluco, doido, palhaço.
A mulher, vendo-o insultado e vexado, envergonha-se dele, e será um dos nossos maiores aliados. Foi a Polícia que há tempos mandou a mulher sair de casa e abandoná-lo.
Viva o camarada Estaline.
Viva a liberdade.
Alegrai-vos. O camarada Estaline está a derrotar os capitalistas americanos na Coreia. Também em Portugal vai chegar a hora da liberdade, e essa será nossa hora.
Mãos à obra!
15 de Dezembro de 1950
Operários da companhia da electricidade foram a minha casa e retiraram o contador.
Há muito que deixavam avisos de que havia pagamentos em falta. Ora eu dava dinheiro suficiente à mulher para pagar a electricidade, como era seu estrito dever. Mas a perversa dizia que isso era assunto de homem e recusava-se a pagar. Ainda a avisei que eles viriam a casa retirar o contador e disse-lhe até que o melhor era não abrir a porta.
Claro que ela nunca pára em casa durante o dia, pois anda na boa-vai-ela com as amigas ou está em casa do merceeiro, que ali a fornica às primeiras horas da tarde.
Só que nesse dia os da companhia encontraram-na em casa e zás: levaram o fio.
17 de Janeiro de 1951
Nova carta vergonhosa.
Remete: Direcção do Partido Comunista Português.
Destinatários: Camaradas da oficina de cromagem na Rua de Arroios, nº. 107, Lisboa.
Viva o camarada Estaline!
É com vivo entusiasmo que recebemos os relatos da vossa actividade nessa rua de Arroios, com os carvoeiros, os seus fregueses e os ardinas. Tendes seguido à risca as instruções. De facto, para liquidarmos beatas, jesuítas, legionários, pides e fascistas, primeiramente temos de os desacreditar perante a opinião pública. Temos de os arrastar pelas ruas da amargura até os levarmos à loucura. Este é o nosso segredo. Depois de desacreditados podemos então eliminá-los impunemente.
Temos de fazer crer que os que vão à missa são os piores homens da sociedade. Ainda há dias nos livrámos de um que vivia ao Campo de Ourique, mas isso foi bem mais fácil do que será com esse que mora na vossa rua.
Para os liquidarmos a todos temos de os levar um por um, para não terem defesa. Segui à risca as instruções da Polícia. Vós preparais o caminho e a Polícia vem depois em vosso auxílio.
Para que esse jesuíta se agarre a um de vós, dizei alto quando ele passar: mata a família à fome. Chamai-o depois chulo, corno, paneleiro. Ele enerva-se, reage a quente e tenta agredir um de vós, altura em que chamareis a Policia, que o levará à esquadra, onde lhe tratará da saúde.
Está a soar a hora da liberdade, em que poderemos transformar as igrejas em hospitais. Avante, cada vez com mais força e maior coragem.
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«Diário de Joaquim Salatra», por Paulo Leitão Batista
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