São tantas e tais as mudanças na vida das gentes do Interior, especialmente da Raia e mormente em Quadrazais, que vale a pena recordar como era a vida em Quadrazais nos primeiros sessenta anos do século passado e estabelecer uma comparação com os anos que se seguiram, sobretudo os actuais.

III – Ciclo Profano
1 – A janeira – Logo no primeiro dia de Janeiro, à noite, iam os rapazes à volta do povo com a concertina tirar a janeira. Tocavam e cantavam em frente da porta das casas e começavam por dizer: «Quer que cante ou que reze?» Salvo se havia morrido algum familiar há pouco tempo, começavam a cantar:
Ind’agora aqui cheguei,
Já começo a cantar. – bis
Inda não pedi licença,
Não sei se ma querem dar. – bis
Seguia-se o estribilho:
Viv’à estrelinha do Oriente,
Dai-nos luz e salvação.
Vivam os senhores desta casa,
São de boa geração.
Outras quadras se cantavam, seguidas sempre do estribilho, como:
De quem era a bengalinha
Que ‘stava no bengaleiro?
Era do senhor __ (nome do dono da casa)
Que é um belo cavalheiro.
De quem era a camisinha
Que ‘stava no lavadoiro?
Era do menino (menino da casa)
Que tinha raminhos de oiro.
Levante-se lá, senhora,
Dessa cadeira de prata.
Venha-nos dar a janeira,
Que ‘stá um frio que mata.
Levante-se lá, senhora,
Desse banco de cortiça.
Venha-nos dar a janeira,
Ó morcela ó chóriça.
Levante-se lá, senhora,
Do banco de pau d’amieiro.
Venha-nos dar a janeira,
Ó morcela, ó farrenheiro.
E se os donos da casa não davam nada, ameaçavam com:
Levante-se lá, senhora,
Dessa cadeirinha torta.
Venha-nos dar a janeira
Senão caguemos-lhe à porta.
2 – Matança – Era dia de festa. Convidavam-se amigos e familiares, que segurariam o marrano atado pelos pés e pelo focinho, deitado em cima de um banco comprido. Com um navalhão e um alguidar com algum sal, aproximava-se o matador. Espetava-lhe o navalhão no coração. Ouviam-se os guinchos e roncos do marrano até se render por completo. O alguidar apulara o sangue que serviria para fazer as morcelas. Com almieiras de palha queimavam-lhe os pelos. Deitavam-lhe água quente sobre a pele para a lavar, esfregada com pedaços de granito. Um dos presentes «fazia o cú», introduzindo um nagalho de palha para tirar as fezes. Era, então levado para a loije, onde era dependurado no chambaril.
O matador abria-o de alto a baixo, tirando-lhe as tripas, que duas mulheres iriam lavar ao Gorgolão ou noutro local, tripas que serviriam para as morcelas.
A miudagem esperava à porta da loije que lhe entregassem a passarinha (o pâncreas), não a deixando fugir. Extraíam-lhe os bofes e o fígado, após o que lhe deitavam alguns baldes de água quente para o lavar.
Enquanto se fazia o almoço, os homens desafiavam-se para o jogo da barra ou do pulso na rua, com um grande pedregulho. Era então servido o almoço-sopa de grabanços com massa e batatas rachadas com o fígado do porco, prato regado com vinho à discrição.
E assim terminava mais um convívio de familiares, vizinhos e amigos. Mais tarde haveriam de fazer as morcelas, os farrenheiros e, posteriormente, as chouriças com o bucho, que ficariam dependurados na cozinha a defumar. Era costume dar a alguns familiares e amigos uma tijela de massa de morcela ou de farrenheiro. O porco seria depois cortado em pedaços. Uma ou duas coxas dariam presunto. As mantas de carne gorda seriam comida de Inverno, sendo alguma derretida para alinho. Ossos e algumas febras também ficariam na arca salgadeira para alimento do ano. Os chispes eram bons para cozer com feijões e couves. As morcelas e farrenheiros, com batatas cozidas, seriam almoços e jantares por muito tempo. Ás chouriças ficavam reservados os dias de festa ou de visitas.
3 – O Entrudo – um mês antes do Entrudo já se começavam a pôr defumeços junto às portas das casas, deitar cântaros de boguelhas para dentro daquelas, ou até cabeças de burro mortos, e também a dar matracas. Alguns rapazes mascarados colocavam à porta de certa rapariga a quem queriam bem um caco velho com brasas, sobre as quais deitavam açúcar e poejos para cheirar bem. Assim que sentiam o cheiro, os donos da casa vinham à rua agradecer. Se queriam mal à pessoa deitavam sobre as brasas enxofre, cabelos, pimentos ou borracha e, escondidos, esperavam que os donos começassem a tossir e viessem à porta atirar com o defumeço e amaldiçoar quem o lá pusera. Havia quem enchesse um cântaro de barro velho de boguelhas e o atirasse para dentro da casa de alguém, obrigando a rapariga que lá morasse a apanhar as boguelhas e fragar a casa. Se o autor fosse apanhado, sendo amigo, era convidado a beber um copo. Os donos da casa aproveitavam as boguelhas para as ir deitar na casa de quem desconfiavam ter sido o autor do feito. O pior era quando em vez de boguelhas enchiam o cântaro de cinza. A rapariga tinha uma boa trabalheira para limpar a casa.
Também se usava atirar para dentro das casas uma cabeça de burro, cacos velhos, caldeiros velhos, botelhas podres ou algo que fizesse barulho e sujasse a casa. Alguns rapazes tapados com mantas e com um grande ramo de árvore (os rascalheirros) escondiam-se atrás de alguma escaleira à noite e perseguiam os transeuntes, varrendo-os com esses ramos.
Outros rapazes dedicavam-se a dar matracas. Durante o ano iam anotando as tropelias cometidas pelas raparigas. Perto do Entrudo, mascarados e com um funil a fazer de altifalante iam à porta das raparigas deitar a matraca, dizendo alto o que haviam feito que merecesse vergonha ou que eles inventavam.
No dia do Intrudo (Entrudo) alguns rapazes e raparigas vestiam-se de marafonos com os fatos à quadrazenha e com a cara tapada com um véu, passeavam-se a cavalo pelas ruas da aldeia, deitando fitas(serpentinas), acompanhados por muita miudagem. Outros gracejavam com o dia-a-dia, enchendo carregos de palha e correndo pelas ruas da aldeia a fugir aos guardas, vestidos com farda de soldados, até chegarem à raia. Outras brincadeiras se faziam. Armava-se o balho no Vale e, mascarados, balham durante os três dias. Por vezes, alguém atira um rebusca-pés para o meio do dance, pondo as raparigas em alvoroço. Pelo baile passam os intrudos com as suas partes cómicas. Outros dedicavam-se a enfarinhar a cara e o fato novo de algum assistente. Os miúdos com galhas procuravam enrolar as fitês.
Era no Domingo Gordo que se fazia o peditório para os santos. Com grandes cestos, os rapazes recolhiam as dádivas de batatas e chouriças, algumas descomunais, feitas para pagamento de promessas. As dádivas eram depois arrematadas à praça.
4 – O 1.º de Maio – Era o dia das mentiras. Pregavam uma mentira a alguém e de seguida gritavam: É Maio! Durante o mês de Maio pediam as maias-castanhas pisadas, levantando um ramo de giesta com suas flores amarelas- as maias. A quem as não comesse diziam que lhes amontava o burro.
5 – Inspecção militar – Era a maior festa profana para os rapazes. Esta começava em Janeiro, quando os «quintos» (rapazes da mesma idade) se reuniam para ir dar o nome à vila do Sabugal. Chamavam um tocador e iam a cavalo. Mas a festa propriamente dita era em Julho. Oito dias antes, os rapazes interrompiam o trabalho, passando os dias a dançar nos largos, desagarrados ou agarrados, ou dando constantes voltas ao povo com o harmónio, cantando à desgarrada. Todo o povo se associava à festa, dando palpites sobre quem iria ficar apurado, livre ou esperado. Dos mais fracos ou com algum defeito diziam que os livravam eles por um alqueire de feijão.
As moças faziam uns caturnos, geralmente às amêndoas, para que os seus namorados vestissem no dia da Inspecção, com todo o garbo. Na véspera daquela iam banhar-se à ribeira, onde comiam um cabrito assado.
Regressavam à tardinha com a sua vara de amieiro pintada por amoras, dando voltas à terra a cantar a moda da inspecção que o tocador Manel Agusto, trazia todos os anos.
Na manhã seguinte juntavam-se à Praça para partirem em cavalos bem ajaezados com as mais vistosas colchas espanholas para o Sabugal. Antes davam uma volta à povoação, com o tocador a cavalo, guiado pelas rédeas por um moço. Até ao Santo António entoava-se mais uma vez o hino da Inspecção com grande cortejo de pessoas atrás. Dava-se o sinal da largada e cada um tentava chegar em primeiro lugar ao Sabugal. Aí, em duas alas, dirigiam-se, cantando, para o local da Inspecção. Cada um, mais ou menos resignado, colocava na lapela do casaco a fita branca de livre, a verde de esperado ou a vermelha de apurado. Sobretudo os mais contentes com a sua sorte, muniam-se de foguetes. Davam uma volta a pé ao Sabugal, cantando e iam comer uma bucha. Regressavam a Quadrazais. Paravam à Malhada Grande, onde faziam a cobrança dos gastos, deitavam uns foguetes e começava a largada em corrida louca para virem anunciar à terra os resultados. O vencedor da corrida era quase um herói, bem como o cavalo e o dono que possuía tal cavalo.
Chegado ao Santo António, largava uns foguetes. A festa continuava com balho ao Vale, voltas ao povo e farra pela noite fora. Depois, tudo voltava à normalidade.
6 – Dia de anos – Não era especialmente festejado. Lembro-me de, em certo dia de anos meus, ir a caminho de um terreno com meus pais e minha mãe se lembrar que eu fazia anos. Recebi os parabéns e continuámos o caminho sem mais cerimónias.
7 – Os mercados e feiras – Eram muito frequentados por vendedores de produtos da terra, que depois iriam comprar o que necessitavam: sapatos, alguma peça de vestuário. Os mercados mais concorridos eram os do Sabugal, Soito e, raramente, os de Alfaiates. As feiras mais frequentadas eram a de São Pedro, no Sabugal e a Feira Nova, também no Sabugal.
8 – Começo da escola – A escola abria no dia 7 de Outubro. Era dia importante e marcante na vida de toda a criança que iniciava a escolarização.
9 – Dia de Portugal, Dia da República e da Restauração – Eram ignorados. Como não havia indústria para feriados dos empregados, a vida seguia o seu ritmo normal. As pessoas trabalhavam os seus campos e talvez até trabalhassem para terceiros, já que não tinham os salários pagos como os que trabalhavam ao mês.
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