Caim matou Abel motivado pelo ódio e pela vingança. Partir os queixos a um gajo. o trabalho degradante na enxovia e a visita do traiçoeiro Andrade.
31 de Julho de 1946
Caim matou e foi amaldiçoado. Abel foi preso e morto por ter praticado o bem, o mesmo que depois sucedeu a Cristo.
Por Caim ter morto o irmão motivado pelo ódio, a desgraça caiu-lhe sobre a cabeça e o resto da sua vida foi de maldição, sendo severamente castigado pela justiça de Deus, que foi pior do que seria o castigo se este ficasse a cargo dos homens.
Deus não quer que nós castiguemos, pois diz: «não levanteis a vossa mão contra os vossos inimigos e deixai para mim a vingança, que será mais severa».
O invejoso terá mau fim, será criminoso, como o foi Caim.
Se contemplarmos o mundo verificamos que a inveja é a causa principal de ele se transformar num inferno para muitos dos que o habitam.
Deus nos livre de maus vizinhos ao pé da porta, daqueles que invejam o nosso emprego e a nossa camisa lavada.
A mim os vizinhos e os colegas de trabalho perseguem-me impiedosamente, revelando que são movidos pela terrível e escabrosa inveja. É a mesma inveja de que padeceu Caim e que o levou a cometer o crime. Provavelmente não terão a minha vingança. Mas sofrerão os efeitos da justiça de Deus que se abaterá sobre eles.
1 de Agosto de 1946
Cotrim e Valente foram ambos lavar as mãos para merendar. Eram 15 horas e 45 minutos. Disse Valente, enquanto lavavam as mãos:
– Tenho de adquirir forças para partir os queixos a um gajo que aqui anda.
– Então você hoje está assim tão mau? Tenha calma, que isto é uma repartição pública, aconselhou-o Cotrim.
– Eu cá sou assim! Quando penso em partir os queixos a um gajo é porque tenho mesmo de lhos partir.
Enquanto comíamos a bucha, Valente continuou a falar, de modo a que eu ouvisse:
– Está tudo a morrer de fome! O Salazar quer tudo para ele, só sabe arrancar dinheiro aos pobres.
– É para o dar aos padres. Ele é muito amigo do Patriarca, foram colegas em Coimbra, acrescenta Cotrim.
– Pois é. O Salazar é grande amigo dos padres. Ele também é jesuíta. Ó Marquês, anda cá abaixo que os jesuítas já cá estão outra vez!
– Está mesmo tudo nas mãos dos jesuítas. E o povo a morrer à fome.
2 de Agosto de 1946
Andrade veio ao arquivo geral e foi fazer-me uma visita ao cubículo onde me meteram.
– Está um tempo terrível que só faz sono. Se eu estivesse aqui sozinho, como o senhor Salatra está, já tinha tirado uma soneca.
– Eu cá dormir, não durmo, o que estou é aborrecido sobretudo por causa da porcaria deste serviço.
– Também foi uma boa represália o que lhe fizeram… Meteram-no aqui neste quarto escuro, como quem mete um cão na casota.
Andrade estava cheio de razão, porque eu ali, naquela enxovia, não ouvia nada do que se passava na repartição. Agora eles conspiram à vontade. Podem fazer reuniões e promover intrigas em volta da mesa de Silvino, onde se juntam Veiga Cardoso, Máximo, Cotrim, Dias do Carmo e até Valente, que passa lá boa parte do tempo e é o maior bruto que conheci até hoje. Os revolucionários unem-se para chamarem filho da puta e sacana a quem está ali metido num canto. E contei a Andrade:
– Há dias, antes de me meterem nesta enxovia, ouvi-os a conspirar. Diziam palavrões de tapar os ouvidos, próprios de comunistas e anarquistas muito ordinários. Não podendo aguentar mais, dei uma forte gargalhada. Valente veio ter comigo e perguntou-me o que fora aquilo e eu disse-lhe que estava engasgado. Então ele disse-me: «Eu tiro-te a engasgadela. Estás é a dar gargalhadas aos teus superiores e isso não se admite, ouviste?»
Andrade, que mais uma vez me provou que é um homem sem carácter, saiu e foi meter tudo no cu de Valente. Este reuniu logo uma trupe indecorosa e infame, para lhes dizer que eu ando a espalhar mentiras e intrigas, acrescentando que o caso só se resolvia a murro e a pontapé e que tinha ganas de ir à cocheira onde me haviam enfiado dar-me uma sova.
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«Diário de Joaquim Salatra», por Paulo Leitão Batista
Amigo Leitão :
Desta vez o Salatra tem razão. « Se contemplarmos o mundo verificamos que a inveja é a causa principal de ele se transformar num inferno para muitos dos que o habitam. »
Esqueceu-se da irmã da inveja, a ambição.
António Emidio