O trabalho no arquivo e a lição do colega Amaro Ferreira. Visita à secção das transferências. Ladrões à solta com a conivência da Polícia do Torel e da Polícia de Vigilância.
24 de Julho de 1946
Um colega chamado Amaro Ferreira foi ao arquivo, onde agora eu exerço funções por desmerecido castigo. Tinha chegado da sede uma grande quantidade de recibos dos pensionistas que era preciso arrumar.
Valente era o arquivista e pediu contínuos para o transporte dos recibos da rua para o quarto andar. Os maços foram transportados às costas e ficaram amontoados no arquivo. Era agora necessário arrumá-los, mas para isso não havia contínuos, porque os que fizeram o transporte foram chamados para outro serviço.
Valente deitou mão a um maço e arrumou-o. Disse depois para Amaro Ferreira, a que também apelidavam de Perna de Pau:
– Já hoje peguei em mil recibos para os arrumar. Se mandasse fazer isto a qualquer aspirante, respondia-me que não era moço de fretes e não os arrumava.
– Eu cá não dizia nada, porque não lhes pegava, respondeu Amaro Ferreira. Se alguém o mandasse a si, dizendo: pegue naqueles recibos às costas e arrume-os, você arrumava-os?
Valente ficou amarelo e não respondeu a Amaro Ferreira.
Mexer nos maços voluntariamente ou fazê-lo obedecendo a ordem para os transportar às costas, para achincalhar, fazendo do funcionário um moço de fretes, são coisas muito diferentes e António Valente ficou ciente disso.
Amaro Ferreira, sem querer, defendeu-me. Na verdade ele é também aspirante e falou por si e não pelos outros.
25 de Julho de 1946
Passei hoje pela secção de transferências, onde fora chamado por Silvino, que me transmitiu, com ar de gozo, que continuaria no arquivo geral, por enquanto:
– Sempre é uma nova experiência, aproveite para aprender alguma coisa.
Reparei que Eugénia, que se juntara ao revolucionário Máximo, fazia comício sobre os crimes da Inquisição, sendo aplaudida pela assistência de comunistas.
– Eram os jesuítas que mandavam na Inquisição, dizia a palerma.
Por sua vez Dias do Carmo, com ar muito sério, propagava a escandalosa teoria da descendência do homem do macaco.
29 de Julho de 1946
A ladroagem anda à solta e a Polícia nada faz, mancomunada que está com os criminosos.
No Fundão mataram o Gonçalves, um comerciante de Lisboa que ali fora para tratar de negócios, e o assassino tirou-lhe da carteira mais de mil contos. A Polícia do Torel*, que é uma cáfila de patifes, prendeu um inocente: o motorista António Rosa, que nada tinha a ver com o crime e até tinha tentado ir em perseguição do meliante que disparou e roubou o patrão e se escapou fugindo pelas ruas do Fundão.
Outro crime muito falado nos jornais foi a morte de Carlos Usedas, empregado do Banco Espírito Santo, cujo cadáver foi encontrado em Sintra. O assassinado tinha feito um grande desfalque no banco e o caso envolveu o Agostinho Lourenço, director da Polícia de Vigilância**, e outros cavalheiros de vulto, pelo que o crime nunca se pode esclarecer, não se apurando quem matou o tal Salcedas.
Se sou eu o apontado, como muitas vezes acontece por queixa da minha vizinhança, ainda que não tenha cometido qualquer falta, logo a Polícia vem em força sobre mim, levando-me à esquadra e sujeitando-me a todo o tipo de vexames.
É por essas e outras que eu não confio em polícias, que são uma corja que persegue e maldiz as pessoas de bem.
* A Polícia do Torel era a Polícia Judiciária, assim chamada por ocupar o Palácio do Tourel, no Campo dos Mártires da Pátria.
** Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE), percursora da Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE). A PVDE fora extinta em 22 de Outubro de 1945, pelo que quando Salatra escreveu Agostinho Lourenço era já director da PIDE.
:: ::
«Diário de Joaquim Salatra», por Paulo Leitão Batista
Leave a Reply