Um homem só é um besoiro. A funcionária Eugénia espalha a maledicência. Agressão dos Nabais. No escritório do Dr Soares Luiz
30 de Abril de 1942
Diz-se na minha terra que um homem só é um besoiro. Não tenho quem me faça de comer, me lave a casa e me trate da roupa. O filho é um traste de primeira. Passa dias e noites sem pôr os pés em casa, dizendo-me depois, a maus modos, que estivera com a mãe.
Tive de pedir a uma vizinha que me lavasse umas peças de roupa, para não ir sujo para o trabalho. Passeie a comer pelas tabernas, de mistura com os bebedolas que ali esvaziam copos de vinho tinto.
Valem-me as missinhas e as leituras dos Evangelhos, que são a minha distracção. Agora, para além da missa da manhã na igreja de Arroios, passei também a ir á missa da tarde na igreja da Encarnação, regressando a casa já a coberto da noite, livrando-me assim dos maus encontros com a vizinhança.
Na repartição tento cumprir o meu dever, afastando-me de todas as conversas e fazendo-me mouco perante as patranhas que Máximo, Cotrim, Veiga Cardoso e o próprio Silvino de Oliveira continuam a dizer. Mas sinto-me perseguido pelo olhar de Eugénia. Esta mulher, de que sempre desconfiei, olha-me com desprezo, como se fosse o pior dos bandidos à face da terra.
O colega José Gomes, veio há dias dizer-me que Eugénia passa o tempo a dizer mal de mim. Que eu era um homem asqueroso, que batia na mulher e a deixava presa em casa, a pão e água, a ponto de a pobre fugir para não ser mais humilhada. Vê-se bem que é uma mulher perversa, daquelas que se julgam donas dos homens e que querem vergá-los à paulada, para subverterem a ordem das coisas, passando elas a mandar. Não fosse o estado calamitoso em que me encontro, e depressa a colocava no lugar com duas palavras bem mandadas.
7 de Maio de 1942
Fui agredido na rua pelos três Nabais, o pai e os dois filhos, que trabalham na loja de ferragens. O moço mais velho, um rufia de primeira água, que se gaba de andar sempre à pancada, ao mesmo tempo que me chamava porco e sovina, deu-me um murro no nariz, fazendo com que pingasse sangue.
Fui queixar-me à polícia, que afinal se riu de mim. O graduado de serviço, um sabujo chamado Marques, olhou-me com o maior dos desdéns e avisou-me de dedo em riste, como quem prega sermão a um garoto, que me portasse bem, ou então que me defenda.
– A polícia não pode andar a guardar as pessoas. Muito menos as da sua laia.
12 de Maio de 1942
Fui falar com o Dr Soares Luiz ao escritório onde trabalha na Rua do Ouro. Afinal os amigos são para as ocasiões e eu estou necessitado de uma mão amiga que me ajude a sair deste pântano.
Mal me recebeu, deu-me um tremendo raspanete por não cumprir os deveres de legionário. Expliquei-lhe as dificuldades e as vergonhas que tenho passado, agora ainda mais sentidas com a notificação que recebi do tribunal para prestar testemunho no Tourel*, pois fora alvo de uma queixa que a maldosa fez contra mim, acusando-me de maus tratos, de a ter corrido de casa e de a ter deixado sem recursos. Só assim se acalmou, mas acabou por me ferir na dignidade, porque afinal nada compreendeu.
– Não lhe dê trunfos. Garanta-lhe a sobrevivência, dando-lhe uma pensão, assim como ao filho, e recolha prova disso, para não ser incriminado.
Ouvi-o por respeito e atendendo a que tinha sido eu a procurá-lo, mas saí imediatamente, agradecendo-lhe, ainda assim, os conselhos.
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* Palácio do Tourel: local de Lisboa, junto ao Campo dos Mártires da Pátria onde ao tempo estava instalada a Polícia Judiciária.
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«Diário de Joaquim Salatra», por Paulo Leitão Batista
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