Um velho e bafiento maço de papéis encontrado numa antiga habitação em Arroios, Lisboa, regista, a modo de «diário», o quotidiano de um homem simples que da província rumou a Lisboa onde viveu entre paradoxos e incompreensões.
15 de Junho de 1940
Finalmente o Dr António Salazar levou à certa o general Franco, fazendo com que ambos assinassem a declaração de neutralidade.
Mas a guerra continua a dilacerar a Europa e penso que não tardarão os racionamentos, já que alguns bens alimentares estão em falta, como é o caso do bacalhau, ainda que a nossa frota tenha carta branca para pescar nos mares do norte.
16 de Junho de 1940
Em casa a mulher não me dá sossego. Quer que lhe encha a mão de dinheiro para o esbanjar na praça e nos comércios, ciosa que anda por comer do bom e do melhor. Continuarei a ser eu a abastecer a despensa, e será com maior comedimento, que a vida não está para gastos.
A desalmada queria comprar um bacio esmaltado para o quarto do filho, dizendo que aquele que lá tem está velho e prestes a romper-se.
– Pois que se rompa e se substitua por um alguidar, disse-lhe. A vida não está para aventuras.
Atirou-me que falta comida em casa, que andamos mal e porcamente vestidos, e ainda temos de poupar em bacios.
– Mais vale fugirmos para a tua terra, que aí sempre se cultivam feijões e batatas.
A malcriadez e o descaramento são as suas armas de arremesso, mas não me desviarei do meu caminho, que o momento é de muita responsabilidade.
24 de Junho de 1940
Ontem fui à inauguração da exposição histórica do Mundo Português.
A Caixa Geral de Depósitos ofereceu entradas aos funcionários, mas os chefes deram-nas aos que lhes lambem as botas e lhes fazem favores. A mim, perseguido como sou na repartição, nem mas deixaram ver.
Valeu-me ser legionário e, mesmo assim, tive que mendigar um convite ao Dr Soares Luiz, para evitar desembolsar os 5 escudos que cobram pela entrada na grande exposição histórica.
Mas que cerimónia! Lá estavam o presidente do Conselho, Dr Oliveira Salazar, acompanhado pelo general Carmona, Sua Eminência o cardeal Gonçalves Cerejeira, o engenheiro Duarte Pacheco, ministro das obras e presidente da Câmara, António Ferro, director da Propaganda, e Augusto de Castro, grande organizador da exposição. Foram muitas mais as personalidades ali presentes, incluindo convidados estrangeiros. O presidente Carmona inaugurou a exposição, perante a emoção de toda a vasta assistência.
Mas que obra grandiosa, digna da nossa história, plantada no local de onde saíram as caravelas que se fizeram aos mares e descobriram novas terras, novas gentes e grandes riquezas.
As dificuldades vividas em razão da guerra europeia não impediram a grandiosa exposição, mesmo que tudo se tenha feito com grandes dificuldades.
Se conseguir nova entrada voltarei à exposição para a visitar com toda a calma e observar os grandes feitos da nossa história. No eléctrico houve grande abatimento de preços.
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«Diário de Joaquim Salatra», por Paulo Leitão Batista
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