São tantas e tais as mudanças na vida das gentes do Interior, especialmente da Raia e mormente em Quadrazais, que vale a pena recordar como era a vida em Quadrazais nos primeiros sessenta anos do século passado e estabelecer uma comparação com os anos que se seguiram, sobretudo os actuais.

II – Ciclo Religioso
10 – O Espírito Santo – No dia de Páscoa fazia-se a primeira romaria ao Espírito Santo, cuja capela fica à Lameira, para lá do Côa. Saía-se em procissão da igreja até à capela de São Sebastião. Depois, cada qual seguia para a Lameira, onde se dava volta à capela em procissão.
Apanhavam ramos de rosmaninho e ervas cheirosas. Voltavam para a aldeia, passando as poldres, caíndo um ou outro, de vez em quando, ao rio. Reuniam-se novamente junto à capela de São Sebastião, donde partiam em procissão, cantando o Aleluia, para a igreja, onde se rezava o terço. Estas romarias repetiam-se todos os Domingos até ao Pentecostes. Nesse dia havia missa solene com sermão na capela, com procissão no final em volta do arraial, ao som de foguetes. Quem quisesse pegar à imagem do Espírito Santo teria de dar uma esmola.
Acabada a festa religiosa, comiam o farnel à sombra das malhadas em volta. Era a altura de experimentar os melhores cavalos. Armava-se o dance, que durava toda a tarde. À volta do arraial instalavam-se vendas de vinhos e petiscos, bem como tabuleiros de amêndoas sobre umas pedras de cantaria, pagando os vendedores uma quota para o efeito.
Estas pedras foram, certo dia, retiradas pelo Manel Zorro. Quando as transportava num carro de bois, aquelas descarregaram-se e aleijaram-no. À tardinha regressavam os que tinham ido à Senhora da Poba (Póvoa), quadrazenhos, os de Vale de Espinho e os dos Fóios, desciam ao arraial, cantavam e balhavam. Entre outras cantigas, entoavam, com a música da Srª da Poba, esta:
Ó Divino Esprito Santo, – bis
Lá ‘stais na vossa Lameira. – bis
Deitai lá a pumbinha fora, – bis
Que venha buber à ribeira. – bis
Já ao cair da tarde regressavam à aldeia, juntando-se todos no cruzeiro do Reboleiro, enfeitado para o efeito. Com o arco, as labardas e o tambor à frente, partiam dali em procissão para a igreja, onde se rezava o terço.
11 – No dia de Santa Cruz iam em romaria às searas.
Ladaínhas de Maio – Para atrair as boas graças sobre as searas, na Segunda-Feira anterior ao Dia da Hora, logo de manhãzinha ia-se em procissão à capela do Santo Cristo e de Santa Eufémia cantando a Ladaínha de todos os santos. Na Terça-Feira iam à capela de Santo António e de S. Jães (S. Gens). Na Quarta-Feira iam à de São Sebastião e do Espírito Santo. No Dia da Hora (Quinta-Feira d’Ascensão) ia-se ao Espírito Santo e de lá traziam ramos de rosmaninho do Paraíso. O padre rezava a hora. Era crença que nessa hora nem os passarinhos podiam ir ao ninho. De seguida o padre benzia os ramos que eram guardados para que as bruxas não entrassem em casa nem fizessem mal às pessoas. Posteriormente, com esses ramos faziam cruzes que colocavam nas searas de pão e de trigo, para que o bicho não entrasse com eles, já que acreditavam que era nesse dia que secavam as raízes às searas.
12 – Dia de Corpo de Deus – Não me lembro de haver grande tradição, para além da missa e procissão do Santíssimo.
13 – Santo António – Era festa que não tinha música, mas tinha foguetes. Serviam-lhe os rapazes solteiros.
Iam buscar o santo à Igreja, para onde havia sido levado na véspera, com a cruz e as labardas à frente, como na festa do Espírito Santo. Havia missa na capela, a que se seguia a procissão à volta daquela. Arrematavam-se as pernas dianteiras e traseiras antes do santo entrar na capela, onde ficaria até dia 13 do ano seguinte. Lá diziam os versos:
São João a vinte e quatro,
São Pedro a vinte e nove,
Santo Antonho a treze
Por ser a festa mai nobre.
De tarde os rapazes desafiavam-se na Praça ou noutro terreiro a ver quem melhor conseguia manobrar a labarda grande, iniciando com «Em lavor de Stº Antonho».
A mais pequena era labardeada pelos rapazotes.
14 – São João – Era festa apenas profana. Fazia-se o carvalho (na realidade um pinheiro roubado) enfeitado com rosmaninhos e bandeirinhas de papel e com uma boneca no alto, feitas pelas raparigas, em vários locais da povoação, a que se ateava fogo à noitinha. Cantavam quadras alusivas a São João, como:
São João é lindo moço,
Ai, se não fora tão velhaco. – bis
Foram três moças à fonte,
Ai, foram três e vieram quatro. – bis
Os rapazes saltavam sobre pequenas fogueiras ao lado do carvalho, dizendo:
Sarna em vós, saúde em nós!
Sarna em quem está à roda,
Saúde em mim que venho agora!
Sarna no João,
Saúde no meu coração!
As raparigas dum largo não poderiam ir dançar noutro largo, sob pena de difamação. A festa prolongava-se pela noite fora. Alta noite os rapazes iam roubar os vasos de manjericos e cravos das escadas e janelas para enfeitar a fonte. Fechavam as bicas até chegar a carreira, para que todos pudessem ver os enfeites. Depois as raparigas iam buscar cada qual os seus vasos.
Praticavam-se várias superstições, como: as raparigas, para ver se fulano ou sicrano lhes queria bem ou mal, escreviam os nomes desses rapazes em folhas de figueira e deixavam-nas ficar ao luar. De manhã iam ver se as folhas haviam murchado ou continuavam frescas. No primeiro caso fulano queria-lhes mal, no segundo queria-lhes bem. Também partiam ovos para um copo de vidro. Antes do nascer do sol iam ver o resultado. Se o ovo tivesse adquirido a figura de um barco ou de um mastro, queria isso dizer que essa pessoa iria viajar. Se não resultasse figura alguma é porque São João não dera sorte. Ao partirem os ovos diziam: «Meia-noite está a dar e este ovo estou a escarchar. É para ver a sorte que Deus está para me dar!»
Alguns rapazes iam de noite tomar banho no rio para que lhes saísse a sarna e iam também tirar o olho à fonte antes do nascer do sol porque nesse momento a água teria mais virtude e tinham fé que São João lhes curasse os males.
Na manhã de São João iam passar os meninos. Se o menino era cobrado, isto é, sofria de hérnia, rachava-se um carvalho e tocavam-lhe com o menino, dizendo:
Toma lá Maria.
Toma lá, João.
Eu dou-te um menino podre,
Tu deita-me um são.
Toma lá, Maria.
Toma lá, João.
Se este menino é cobrado,
Deus o ponha são.
Atavam-se, então, as duas partes do pau rachado com a camisa do menino. Se não secasse, o menino ficaria curado.
Também diziam que cavalos vinham beber ao lameiro da boa erva na manhã de São João.
15 – São Pedro – Era também festa apenas profana. Reparava-se com enfeites o que restara do carvalho do São João, a que se ateava fogo à noitinha. De dia ia-se à Feira ao Sabugal, a maior do ano, donde as mães traziam uns pífaros de barro pintado de branco com duas riscas verdes e vermelhas, pelo que os miúdos iam esperar os pais bem longe, perguntando a todos pelos pais. Muitos enganavam-nos dizendo-lhes que os pais vinham carregados de brinquedos, de cerejas e duma grande melancia.
Era o São Pedro que marcava o fim dos contratos dos pastores e das criadas e criados.
Do São João ó São Pedro
Quatro ó cinco dias são.
Moços qu’andais à soldada,
Alegrai o coração!
Quem quisesse assoldadar-se ia à feira procurar patrão. Os criados faziam as contas com o patrão ou continuavam novo ano ao seu serviço.
Os donos de gado procuravam novo pastor se o anterior saísse e era então que se faziam as contas do gado com o pastor, vendendo-se as rezes velhas e comprando outras novas.
16 – Senhora d’Assunção – Apesar de ser a padroeira, ou orago de Quadrazais, apenas havia missa seguida de procissão. O Santíssimo ficava em laus perene por 24 horas.
17 – Santa Eufêmia – Era e ainda é a maior festa da aldeia. Dias antes já se deitava um ou outro foguete para lembrar que a festa estava para breve. Enfeitavam a Avenida e a rua até à igreja com papéis coloridos em cima de pequenos pinheiros e com arcos de pinheiros engalanados. A iluminação da rua era feita por um ou outro petromax, para além das velas da procissão. Após a electrificação da aldeia a decoração passou a ser feita por profissionais de fora, com arcos iluminados.
No dia 15 fazia-se a feira junto do arraia, espalhada pela Burraca. A dos porcos era à Ladeira. Pelas três horas da tarde chegava a música (banda), esperada pelos mordomos ao Santo António. Deitavam-se alguns foguetes. Iam a casa dos mordomos, onde petiscavam cascoréis e bebiam um copito de vinho do Porto ou anis. Dirigiam-se ao arraial, onde tocavam um pouco.
Ao fim da tarde começava a procissão da capela para a igreja, incorporada por muita gente vinda de fora e por muitos cumpridores de promessas, sobretudo mulheres vestidas de saiotes brancos, descalças e com grandes velas. A santa ia engalanada com grosso cordão de oiro antigo e brincos também caros. Ao longo do corpo pendiam duas fitas brancas onde as pessoas pregavam com alfinetes, por esmola ou promessa, muitas notas de 50 e 100 escudos, uma fortuna para a época.
Uma bateria sobre o andor iluminava a santa. Deitava-se o balão e muitos foguetes, sobretudo de lágrimas. À porta da igreja arrematavam-se as pernas do andor, isto é, o direito de meter a santa na igreja. Este direito era objecto de promessas, pelo que havia disputas na arrematação, chegando a valores elevados para a época. Perdia-se muito tempo nesta contenda. Terminada a arrematação das pernas dianteiras, os arrematantes pegavam nas pernas arrematadas e terminava-se a das pernas traseiras. Acabada esta, havia grande foguetório, que anunciava a entrada da santa na igreja. Seguia-se a missa e sermão feito por um pregador de fora.
Seguia-se o balho no arraial, primeiro ao som da música, depois ao som da concertina, largando-se um foguete de vez em quando. Em intervalos, fazia-se a arrematação dos produtos oferecidos à santa e colocados no bazar no sítio onde havia um castanheiro-produtos da terra, garrafas de vinhos ou licores e outros produtos.
À meia-noite era o fogo preso, com centenas de foguetes de resposta e em que se apreciavam, sobretudo, os foguetes de lágrimas. Terminava com o rebentamento do castelo com foguetes de um só tiro muito potente. O balho entrava pela noite fora.
No dia 16, pelas oito horas da manhã, começava a alvorada, anunciada por forte foguetório, seguindo-se o toque de alvorada pela música. Terminava com outro forte foguetório. Pelas onze horas saía a santa da igreja em procissão para a sua capela. Rezava-se missa campal no coreto acompanhada pela música e com novo sermão. Seguia-se a procissão morosa à volta do arraial, constantemente interrompida por quem queria pegar à santa, deitando esmola em açafatinhos ou bandejas levados pelas mordomas, como acontecera nas duas procissões anteriores. Algumas meninas colocavam florinhas em pano, de cores variadas, nas lapelas das pessoas para recolher mais algum dinheiro.
Na capela vendiam-se figuras de cera aos que haviam feito promessas por cura de um pé, de um braço, etc. Seguia-se nova arrematação das pernas dianteiras e traseiras. À entrada da santa para a capela rebentava novo e forte foguetório. A procissão terminava já tarde. Comprava-se então uma grande melancia para casa e outra de oferta aos pais e ia-se almoçar. À tardinha começava de novo o balho, que se prolongava noite fora, interrompido à meia-noite por novo fogo preso.
No dia 17 continuavam os balhos e, à tarde, fazia-se a tourada no largo do Vale, cercado por carros de bois carregados de troncos, com os bois a serem picados por varas compridas com aguilhões na ponta e depois com a pega ao forcão, terminando, geralmente, com o agarrar do boi.
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