Um velho e bafiento maço de papéis encontrado numa antiga habitação em Arroios, Lisboa, regista, a modo de «diário», o quotidiano de um homem simples que da província rumou a Lisboa onde viveu entre paradoxos e incompreensões.
3 de Agosto de 1938
Passada a azáfama das relações de transferência dos ministérios, a vida na repartição voltou à normalidade. Era sempre assim no início dos meses, altura em que a calma do trabalho de movimentação das pastas e dos processos para o arquivo, dava azo a conversas fiadas em que sobrevinham as patranhas de Máximo, Cotrim e Veiga Cardoso, que pareciam combinados na malvadez. Ora vomitavam ódio contra o general Franco que em Espanha dava cacetada nos comunistas, ora conspiravam contra o doutor António Salazar que endireitava a Nação, ora caluniavam o Cardeal Patriarca de Lisboa e o Papa que defendiam a fé.
Veiga Cardoso, confiante em que sabia algo, por ler uma espécie de almanaque que às vezes trazia no bolso do casaco, continuava a dizer as suas parvoíces. Umas vezes calava-me, face aos disparates, mas também sucedia ter que reagir perante tanta falta de inteligência.
– Quando algo nos corre bem, damos graças a Deus, sentenciou ele. Mas quando temos uma contrariedade damos as mesmas graças, dizendo que se não fosse Deus a coisa era ainda pior. Se alguém sofre um acidente e morre, damos graças porque Deus o levou para si e não o deixou a sofrer das mazelas provocadas pelo acidente. Afinal em que ficamos? Então isto é só graças?
Mais uma vez não me pude conter com tamanhas paspalhices:
– Vê-se mesmo que de religião nada entende. Deveria ler os livros sagrados, em vez desses nefandos folhetins que traz nas algibeiras. Então não sabe que o mal que nos sucede é obra do diabo? Deus ama-nos e quer só o nosso bem, mas quando nos deixamos tentar pelo demónio então Deus dá-nos rédea larga, porque temos de ser nós a sair da tentação.
Sem argumentos, porque só sabe dizer o que previamente prepara, Veiga Cardoso desistiu de me chatear. Desta vez amuou, mas às vezes vai para junto de Cotrim e de Máximo queixar-se das minhas investidas.
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«Diário de Joaquim Salatra», por Paulo Leitão Batista
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